4.7 - Relação Secular - III
Desenho de Joaquim Vilanova - 1833
“O Tribunal da Relação foi fundado por Filipe I (II de Espanha), nas cortes de Tomar de 1583, correspondendo a uma velha aspiração dos portuenses e das gentes do Norte. D. João I havia criado a Casa da Suplicação que funcionou como o mais alto Tribunal até que, em 1834, foi substituído pelo Supremo Tribunal de Justiça. O mais alto magistrado deste pretório era designado por Regedor das Justiças e devia ter qualidades que, ainda hoje, «mutatis mutandis», podem servir de padrão aos juízes. Estipulavam as Ordenações que, relativamente ao Regedor, «deve procurar-se que seja um homem fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente e de muita autoridade, e letrado se for possível; e sobretudo tão inteiro que sem respeito de amor, ódio ou perturbação outra do ânimo possa a todos guardar justiça igualmente. E assim deve ser abastado de bens temporais, que sua particular necessidade não seja causa de em alguma cousa perverter a inteireza e constância com que deve servir». «E assim deve temperar a severidade que seu cargo pede, com paciência e brandura no ouvir as partes, que os homens de baixo estado e pessoas miseráveis achem nele fácil e gracioso acolhimento, com que sem pejo o vejam e lhe requeiram sua justiça, para que suas causas se não percam ao desamparo, mas hajam bom e breve despacho».
Desde o século XV os reis eram pressionados no sentido de aumentarem o número de tribunais de recurso. O problema foi discutido nas cortes de 1472-73 (D. João II). As razões postas baseavam-se na insuficiência das duas casas de justiça que havia, especialmente insuficiência territorial, pois as duas que existem «ficam tão remotas dos extremos do reino que se um homem cai em cadeia ou lhe vem demanda, logo se julga perdido, porque hão-se passar dois, três, quatro anos, e mais, antes que os feitos tenham fim; e, se é preso por delito grave, e tem a justiça por parte, jaz na prisão até fugir dela ou morrer aí» (Gama Barros). O Rei não acedeu, preferindo determinar que a Casa da Suplicação se tornasse itinerante. Em vez disso, concedia «alçada» a quem entendia para julgar «in loco», sem apelo nem agravo, facto que, manifestamente, desagradava. Filipe I, cônscio de que tornava uma medida de agrado geral para a população nortenha, acedeu às justas solicitações dos portuenses”. Texto do Conselheiro José Pereira Graça
CADEIA DA RELAÇÃO - TABELA PARA REGULAR A DISTRIBUIÇÃO DOS PRESOS, SEGUNDO SEUS CRIMES, CONDIÇÃO, SEXO E IDADE - 1843
Camilo Castelo Branco
No site do Tribunal da Relação do Porto pode ler-se: “Os presos eram distribuídos pelos diversos pisos, conforme a sua posição social, um pouco à guisa do inferno de Dante. Nos andares de cima, os mais categorizados, ali se situando os catorze "quartos de malta" (celas individuais). Nos "quintos dos infernos", no rés-do-chão, os mais pobres, a ralé, onde os detidos se amontoavam em amplos salões com piso de pedra, as enxovias, com catres imundos em redor, os quais, durante o dia, eram levantados por meio de dobradiças, ficando empinados junto às paredes. Essas celas comuns eram conhecidas pelos nomes de Santo António e de Santa Ana, as destinadas a homens, de Santa Teresa para mulheres, de Santa Rita para menores, de S. Victor e o Segredo para castigos. Havia uma oficina denominada Senhor de Matosinhos. A imundice das enxovias tinha o cimento dos anos e das sucessivas gerações de presos. O cheiro das latrinas era nauseabundo. O ambiente soturno e triste, o que levou D. Pedro V a exclamar, após uma visita, em 1861: "É preciso arrasar tudo isto!".
Nos seus soturnos ergástulos albergou muitos presos, alguns célebres: José do Telhado (José Teixeira da Silva), Camilo Castelo Branco (cela n.º 12). Nesta mesma cela esteve preso o desembargador Gravito, antes de ser enforcado, juntamente com mais nove liberais, em forca instalada na actual Praça da Liberdade, por decisão dos miguelistas. Mais tarde, esteve ali também detido o banqueiro Roriz. Obras recentes preservaram-na. Ana Plácido, então amante de Camilo, esteve instalada num corredor porque não havia celas para senhoras de sociedade. O Duque de Terceira permaneceu, durante algum tempo, na cela n.º 8 (foi preso durante a Patuleia por Passos José). O médico que envenenou familiares, Urbino de Freitas, ocupou a n.º 13. João Chagas, por via do seu republicanismo, estava detido nesta cadeia quando eclodiu a abortada revolta de 31 de Janeiro. Os processos relativos a Camilo, Urbino de Feitas e Zé do Telhado, encontram-se no pequeno museu judiciário instalado no Palácio da Justiça do Porto, onde também funciona, actualmente, o Tribunal da Relação, que já tinha saído da Cadeia para se albergar na Rua Formosa, onde, depois, funcionou o Arquivo de Identificação e, agora, está a sede da Liga os Combatentes.
É interessante supor Camilo Castelo Branco, de imaginação flamejante, a resmungar na sua cela n.º 12, como leão enjaulado, por ter cometido crime que, agora, já nem o é: relações sexuais com mulher casada. Só o adultério da mulher era punido. O homem casado podia impunemente relacionar-se com mulher que não fosse casada. Sendo-o, como era Ana Plácido, então poderia ser punido, com pena grave, extensível a ambos. Aguardaram, durante mais de um ano, presos o julgamento em que o júri não considerou provados os factos e, por isso, foi proferida sentença absolutória. No cárcere, Camilo continuou a escrever e, no silêncio do último piso, onde se situava a cela com janela para nascente - é a que se situa mesmo por baixo do ângulo esquerdo, de quem está virado para ele, do frontão -, o que mais o irritava era o barulhar ritmado e invariável dos passos do carcereiro sobre as tábuas rangentes do sobrado.
De noite, nas longas lucubrações, convenceu-se de que o marido enganado, Pinheiro Alves, teria subornado um outro preso para o matar. Confidenciou esse temor a outro preso que também ali se mantinha, José do Telhado. Este sossegou-o, dizendo-lhe: "- Esteja descansado. Se aqui alguém tentasse contra a sua vida, três dias e três noites não chegariam para enterrar os mortos". Talvez a aura romântica que se havia de formar à volta do célebre salteador, emergisse também do reconhecimento do escritor pela protecção dispensada.
Camilo encerrou o seu livro "Memórias do Cárcere", desabafando: "Fecham-se as memórias. Eu devia ter dito porque estive preso um ano e dezasseis dias. Não disse, nem digo, porque verdadeiramente ainda não sei porque foi." Claro que sabia. O que poderia não entender era o rigor dos preconceitos vitorianos da época, aos quais, afinal, surpreendentemente, o Tribunal se não vergou…
Camilo esteve preso duas vezes no Cadeia da Relação. A primeira em 1846, também por razões amorosas com Patrícia Emília, uma vila-realense que consigo seguiu para Coimbra e Porto. Esteve preso apenas 11 dias porque seu tio desistiu da acusação e pediu a sua liberdade.
Cela onde esteve Camilo Castelo Branco – foto do blog A Vida em Fotos
Durante a sua segunda estadia na Relação, um ano, Camilo esteve no quarto S. João que tinha uma janela virada a Nascente, com vista para o Douro. Aí escreveu o romance “Amor de Perdição”, em que descreve a partida de Simão Botelho para o desterro à vista da sua amada que se encontrava no Convento de Monchique.
Casa onde existiu o tribunal em que Camilo foi julgado pela sua ligação com Ana Plácido”. Fica na Praça Filipa de Lencastre, esquina com a Rua da Picaria. Teve no seu advogado Dr. Marcelino de Matos uma defesa notabilíssima. Por coincidência, durante o seu depoimento rebentou uma terrível trovoada e este afirmou: É Deus falando contra a iniquidade deste processo e não levando a bem a monstruosidade desta prisão…
Com todo este ambiente os jurados, por maioria, consideraram-nos inocentes. Assim, o juiz decretou a absolvição dos amantes.
…Nas tranquibérnias políticas do tempo de D. Maria II, após a sangrenta guerra civil que opôs liberais e miguelistas, as várias tendências políticas hostilizavam-se permanentemente e os governos caíam como fruta madura. Bastava o Marechal Saldanha tomar a iniciativa de um golpe militar, e logo mais um governo devia constituir-se em substituição de outro que tombara. Foi a época da Setembrada, da Belènzada, da Revolta dos Marechais, da Maria da Fonte, da Patuleia. Foi na sequência do este movimento, a influenciar o Porto, que o prestigiado duque de Terceira, de seu nome completo, António José de Sousa e Meneses Severim de Noronha, foi enviado para esta cidade, na esperança de que a força do seu enorme prestígio acalmasse os ânimos. Em vez disso, foi preso, por pouco tempo, embora, quando exercia as funções de lugar-tenente da Rainha. A prisão foi ordenada e efectuada pelo patuleico José da Silva Passos que, com todo o respeito, teve a coragem de pedir que se considerasse preso, ao que ele obedeceu prontamente e deu entrada tranquilamente na Cadeia. Porto, Novembro de 1998
(O texto de síntese histórica do Tribunal da Relação do Porto é da autoria do Sr. Conselheiro José Pereira da Graça)
…José Teixeira da Silva (Zé do Telhado) nasceu em 1816 (foi em 1818), provavelmente no lugar do Telhado, do concelho de Penafiel. Alistou-se nos Lanceiros da Rainha D. Maria II, tomando parte em vários combates, ascendendo distintamente ao posto de sargento. Obedeceu às ordens de Saldanha na Revolta dos Marechais, em 12 de Julho de 1837, que colocou no poder o marquês Sá da Bandeira. Na Revolução de 1846, acompanhou o então Visconde Sá da Bandeira a Valpaços, e em boa hora para aquele, pois lhe salvou a vida. Recebeu a Torre-e-Espada, ordem honorífica criada por D. Afonso V destinada a distinguir elementos das forças armadas, tendo os seus possuidores honras militares e precedência a todas as outras ordens daquelas forças, em igualdade de grau. Terminada a guerra após a Convenção de Gramido, tentou obter um modesto emprego no Depósito do Tabaco, instituição economicamente importante para o norte, nomeadamente para o Porto e que o grande jurista e liberal, membro do Sinédrio, Ferreira Borges salvara da gula dos franceses comandados por Junot. Não lhe deram o emprego…
...Desiludido, voltou para casa onde o esperavam a mulher e cinco filhos à beira da miséria. Acabou numa falperra à semelhança de um irmão, do pai e do avô Sodiano, distribuindo generosamente o produto dos roubos. Foi julgado por isso e por assassínio de três pessoas, cometidos pelos seus capangas: um padre, um criado da Casa do Carrapatelo e um correlegionário que, num assalto fora ferido, ficando incapaz de fugir. Foi deportado para Angola onde morreu cheio de prestígio entre os indígenas, no Malongo ou em Xissa, em 1875...
História do Zé do Telhado – blog Calçada da Miquinhas http://calcadadamiquinhas.blogspot.pt/2012/07/o-robin-dos-bosques-portugues.html
Documentários sobre o José do Telhado
(O texto de síntese histórica do Tribunal da Relação do Porto é da autoria do Sr. Conselheiro José Pereira da Graça)
Apesar da Cadeia da Relação não estar sob a administração da Misericórdia do Porto, esta Instituição manteve ininterruptamente o serviço assistencial aos presos. De facto, apenas colaborava de forma complementar relativamente à resolução de algumas questões e somente a enfermaria estava sob a sua directa responsabilidade.
A administração dos serviços prisionais na parte atribuída a esta Instituição estava a cargo de dois Irmãos designados por Mordomos dos Presos, um de condição nobre e o outro oficial.
Ao nível do apoio material, a Misericórdia garantia a distribuição de alimentos, ou seja, o almoço às quartas-feiras e domingos aos presos mais carenciados de acordo com critérios previamente definidos num assento.
Exclusivamente a cargo da Santa Casa da Misericórdia estavam os que se encontravam nas enfermarias da Cadeia a quem era fornecida uma dieta diária semelhante à dos doentes do Hospital de Santo António.
Nos edifícios prisionais do Porto, as precárias condições de habitabilidade, fruto da falta de ar e luz associada à extrema humidade e frialdade, em muito contribuíram para a formação de um ambiente propício ao aparecimento de graves doenças, principalmente em presos de longa data e saúde mais frágil. Contudo, não se ficou apenas a dever a este factor o precipitar da doença e da morte mas, acresceu ainda, a falta de higiene, a alimentação deficiente e os maus tratos. O elevado número de enfermos e de mortos levou a Santa Casa a nomear uma “Comissão dos Socorros dos Presos da Cadeia da Relação”. Esta comissão, após ter avaliado a situação dos reclusos, promoveu uma subscrição pública para angariar fundos que permitissem implementar uma série de reformas e consequentemente melhorar de forma significativa as condições de vida nas enxovias.
A contrastar com a falta de condições das enxovias e demais instalações, é de salientar a ordem e asseio que imperavam nas enfermarias que estavam totalmente entregues aos cuidados da Misericórdia do Porto.
A Misericórdia, no que se refere à defesa dos seus “embandeirados”, frequentemente designada por Livramento, tinha ao seu serviço advogados e solicitadores em número variável de época para época, para dar cumprimento aos processos judiciais dos presos inscritos no Rol e outros admitidos por piedade.
A Misericórdia tinha um capelão para acompanhar os presos religiosa e moralmente. Mas, para além destas obrigações, a Mesa impunha-lhe tarefas específicas, nomeadamente, celebrar missa na capela da Cadeia aos domingos e dias de preceito, indicar aos presos e carcereiros os dias a jejuar e a guardar abstinência, advertir os presos para a confissão e salpicá-los todos os domingos com água benta. Também competia ao capelão dos presos realizar os funerais dos que morriam nas cadeias tal como dar consolo e presidir à procissão dos condenados à morte.
“A partir de 1987, o edifício, cedido pela Direcção Geral do Património do Estado ao IPPC sofreu um conjunto de intervenções para suster o seu estado de degradação, que foi acompanhado por sondagens arqueológicas, datação de materiais, investigação histórica, etc. Em 1989 foi adjudicado o seu projecto de recuperação e remodelação ao Arq. Humberto Vieira e ao Gabinete de Organização e Projectos, Ldª. Em 2000 foi iniciada uma última intervenção de adequação às suas novas funcionalidades – o Centro Português de Fotografia.
O Centro Português de Fotografia foi criado pelo Decreto-Lei n.º 160/97, publicado no Diário da República de 25 de Junho de 1997, com sede no edifício da Ex-Cadeia e Tribunal da Relação do Porto, desafetado em 29 de Abril de 1975.
As salas de exposição do rés do chão foram utilizadas nesse mesmo ano, a partir de Dezembro, mas o edifício só seria ocupado na sua totalidade pelo CPF em 2001, depois de restaurado a adaptado à sua nova função, pela equipa dos Arquitetos Eduardo Souto Moura e Humberto Vieira.
Em 2007, e no quadro das orientações definidas pelo Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), o Centro Português de Fotografia foi extinto por fusão com o Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. Desta decisão resultou a criação da então Direção-Geral de Arquivos, com sede em Lisboa, que passou a tutelar o CPF (Decreto-Lei 93/2007 de 29 de Março e Portaria 372/2007 de 30 de Março).
Mais recentemente, e no âmbito do PREMAC (Plano de Redução e Melhoria da Administração Central), foi estabelecida a orgânica da nova Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (Decreto-Lei nº 103/2012), que resultou da fusão da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas com a Direção-Geral de Arquivos. Neste contexto, o CPF passou a fazer parte desta nova estrutura nuclear (Portaria nº 192/2012)”. Site do CPF.
Centro Português de Fotografia