sábado, 10 de março de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXVI

9.26 - Ramalho Ortigão em AS FARPAS - IV, Comércio do vinho, Filoxera, Os comerciantes do vinho, Ourives da Valbom, Passeios aos domingos, As "soirés" entre famílias.


Vindima há mais de 100 anos

É certo que na ordem intelectual, e na ordem industrial igualmente, o progresso da cidade está em muitos pontos de vista longe de condizer com o seu desenvolvimento material, no decurso dos últimos anos.
O comércio dos vinhos finos, por exemplo, esse grande veio da riqueza local, decai lamentavelmente de ano para ano, de dia para dia. A probidade impecável, a honradez proverbial que presidia a esta indústria, passou a ser matéria hipotética, ponto de contestação.


Ciclo da filoxera

Observa-se este fenómeno contrastante: por um lado a filoxera diminuiu consideravelmente a produção, por outro lado aumentou o consumo; entre estas duas influências combinadas para diminuir a oferta e para aumentar o valor deu-se precisamente o facto contrário: o preço desceu e a produção subiu! Que quer isto dizer? Que há duas espécies de filoxera, uma nos vinhedos do agricultor e outra nos armazéns do negociante; a primeira diminui e encarece a uva, a segunda embaratece e aumenta a droga. O bicho destinado a destruir dentro de poucos anos o famoso comércio dos vinhos do Porto não é o que ataca a videira, é o que ataca o vinho. A ruína não vem da cepa, vem da pipa. O flagelo mortal não está nas terras do Douro, está na Rua dos Ingleses. Compreende-se o mal enorme desta situação, perfeitamente declarada e manifesta, com relação ao comércio de um produto de condições especialíssimas, como o vinho, tanto mais difícil de acreditar quanto é mais fácil de corromper. O vinho adulterado, como o homem doente de nascença, tem a vida curta. A maior parte da beberagem que hoje se negoceia sob o nome de vinho do Porto não é suscetível de envelhecer. Como os relógios baratos, tem apenas equilíbrio para dois ou três anos. É preciso bebê-lo enquanto ele regula, isto é, imediatamente depois de pronto, como a sopa. Se o fazem esperar, por pouco que seja, ele embaça e transtorna-se. Mais alguns anos de experiência — o tempo preciso para os colecionadores de garrafeiras começarem a provar como velhos os vinhos presentemente novos —, e hão de ver que ninguém mais quererá vinho da véspera, e que os negociantes terão de o mandar pelas portas fresco do próprio dia, precisamente como o pão!


Real Companhia Velha - vinho velho

Antigamente os negociantes de vinho, no Porto e em Vila Nova de Gaia, constituíam verdadeiras dinastias burguesas, em que a honra do negócio e o respeito da firma passavam em brasão de pais a filhos e de filhos a netos. Esta aristocracia mercante acabou com o advento da nova aristocracia política. Antigamente contentavam-se em ser nobres pela probidade e criavam os filhos para mercadores como eles. Agora quase todos querem ser viscondes pela intriga e apelintram os filhos pedagogicamente para deputados. Enquanto ao vinho, dizem-me que as novas camadas sociais ainda sabem, no geral, bebê-lo; mas já não sabem negociá-lo.


Ourives de Gondomar


Outra indústria em decadência, como a do vinho, é a tão simpática indústria caseira da ourivesaria de Valbom. Os antigos feitores habilidosos que faziam ao alicate, em casa, às noites, depois do trabalho dos campos, as bolsas para dinheiro, os cordões de ouro e de prata, ou passaram a trabalhar na joalharia fina, à francesa, ou abandonaram o ofício, ou emigraram. As bolsas e os cordões ficaram apenas para os aprendizes, e são cada vez mais mal feitos, até que deixem de se fazer de todo, por não haver mais quem os queira.
Haverá talvez ainda, se procurarmos bem, um ou outro sinal de decadência nos costumes burgueses, no comércio marítimo, nas indústrias navais, na solidez da riqueza, no culto da arte.
A Sociedade de Instrução é, porém, um fenómeno significativo e consolador. Não sei até que ponto a simpatia do espírito público acompanha os esforços desta operosa associação, nem quais as forças de que ela hoje dispõe, mas creio que lucraria muito o engrandecimento da cidade e o futuro do seu comércio se uma liga de negociantes honrados e instruídos empreendesse na esfera prática uma renovação de movimento semelhante àquele que tão brilhantemente iniciou na órbita das ideias e nos domínios do ensino a associação a que me refiro.


Praça Nova - café «Camanho»; o «Atlier de alfaiate Old England, Duarte & Raymundo»; a «Cervejaria Porto Club» e a «Tabacaria Arnaldo Soares». 1910

Cumpre-me enfim consignar que o Porto perdeu esse bom e saudável cheiro provincial que tão especialmente embebe como de um aroma antigo a prosa dos seus grandes escritores — O Arco de Sant’Ana, de Garrett, e alguns dos romances burgueses de Camilo Castelo Branco e de Júlio Dinis.


Os antigos costumes locais desapareceram com as liteiras do Lopes e do Carneiro, com as cadeirinhas da Rua do Almada, com as tortas do pasteleiro da Rua de Santo António, com os carroções do Manuel José de Oliveira, com os Sanjoões da Lapa, do Bonfim e de Cedofeita, com as merendas pelo rio acima, com a política jacobina de José Passos, na sua casa da Viela da Neta, e com o velho botequim das Hortas, em que à noite se jogava o loto a vintém o cartão, e que, ao abrir-se uma das suas portas envidraçadas guarnecidas da cortininha de cassa branca, enchia de um picante perfume de calda de capilé e de café torrado a rua toda, sobre cujos lajedos dormiam estiraçados ao sol, entre os fardos de estopa e as molhadas de verguinha de ferro, os podengos cor de raposa e os galgos dos lojistas.


Aos domingos de Verão, o picheleiro do Souto, o guarda-soleiro da Bainharia, o ourives ou o mercador de panos da Rua das Flores, ia com o romper do dia à missa das almas a S. Francisco ou aos Congregados; comprava depois o melão, a melancia e as laranjas na Feira do Anjo, e, às seis horas da manhã, na frescura aquática do Cais da Ribeira, embarcava com a família em barco de toldo para a Oliveira, para Avintes ou para Quebrantões.


Aos domingos de Verão, o picheleiro do Souto, o guarda-soleiro da Bainharia, o ourives ou o mercador de panos da Rua das Flores, ia com o romper do dia à missa das almas a S. Francisco ou aos Congregados; comprava depois o melão, a melancia e as laranjas na Feira do Anjo, e, às seis horas da manhã, na frescura aquática do Cais da Ribeira, embarcava com a família em barco de toldo para a Oliveira, para Avintes ou para Quebrantões.


O patrão, de quinzena de ganga e chapéu de esteira; as filhas à frente em toilette de musselina; a mulher ao lado, de saia de nobreza, luvas de retrós e a mantilha de lapim no braço, a jovem com as roupinhas novas de camponesa maiata; e o marçano atrás com niza de briche, camisa de linho caseiro, chinelas amarelas de grosso bezerro de Penafiel, e à cabeça o açafate dos víveres, discretamente cobertos com a alva toalha de olho-de-perdiz, e com o chapéu braguês, duro e afunilado, posto em cima, de remate ao festivo monumento campestre de gastronomia dominical: — o alguidar novo com a infalível sapateimda, as postas de pescada frita, as alfaces, as frutas e a inolvidável borracha de canada com o vinho maduro da Companhia, que há de ir refrescar ao fundo do poço, de borda ornada de craveiros e manjericos, debaixo dos álamos, enquanto a família em folga ripar a salada, sentada na erva.


Tamanho era o dia como a romaria. De sorte que só a noite fechada se voltava para casa. E os que tinham ficado na cidade, depois de terem ido ao Senhor Exposto a Santo António das Taipas ou a S. João Novo, viam do paredão das Fontainhas deslizar em baixo, no espelho negro do rio angustiado e túmido, as lentas barcas iluminadas de lanternas. O golpe das remadas, batendo compassadamente nos toletes e arrepiando a corrente, parecia remexer um turbilhão de estrelas no fundo tenebroso da água; e, de vez em quando, o eco da serra do Pilar repetia como num soluço, da banda de além, uma plangente arcada de violino ou um saudoso harpejo de banzas, com que o morno vento leste varria docemente a superfície do rio, até se ir perder expirante para os lados do Candal, nas alamedas sombrias de Vale de Amores.


Quino (loto)

As soirées chamavam-se súcias, e as melhores eram as da Feitoria e as da Filarmónica. Nas casas particulares convidava-se para beber uma xícara de água morna. Jogava-se o quino marcado a feijões, obrigado a anexins e a jocosidades apropriadas ao número de cada bola que se tirava do saco. Um conviva idóneo incumbia-se da missão de espevitar as velas. Menores de dez anos, inocentes mas circunspectos, serviam o açúcar e o leite. E ao centro da grande bandeja da doçaria e das fatias de pão com manteiga um cão de água em prata sobressaia ouriçado de palitos. As onze horas um fâmulo dizia: — Chegou o criado das senhoras Viterbas com o saco dos xailes e os guarda-chuvas. E a companhia dispersava pelas ruas cavas e silenciosas, em magotes de pessoas atabafadas de agasalhos, precedidas de um vulto empunhando o clássico e monumental lampião, com duas velas, de acompanhar famílias.

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