segunda-feira, 30 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXVII

9.37 -  "Pela noite -Indagações Rui Moreira", Passeio noturno de Rui Moreira, O Porto visto por Richard Zimler


Pela noite -Indagações Rui Moreira"
No Público- Local de hoje (14 de Maio 2006)

«Passeei à noite pela Baixa. Abandonei o carro na Rua do Ateneu,


na esquina onde havia o mural do "preto da Casa Africana", carregado de caixas de chapéus, e admirei a fachada iluminada do silencioso Rivoli. Parei na D. João I, com os seus corcéis recortando a fachada listada do Palácio que foi Atlântico. Passei pela Brasileira e resisti ao café romano porque uma faixa prometia um aterrador karaoke. Segui a calçada portuguesa e entrei na Sampaio Bruno, onde havia transacções ilegais de acções quando a Bolsa disparou em vésperas da Revolução, e de moeda estrangeira quando os cravos desabrocharam.


O antes e o depois…

Quase sem querer, porque de facto não queria, cheguei aos Aliados que não via há meses. Quando lá passo de carro, prefiro fixar o autocarro à minha frente para não olhar o que me desgosta.
A calçada desapareceu e há um manto escuro de granito, um derrame de nafta que se espalha e já não espelha a luz. Recordei-me da Noite de Abril, de Sophia, e vi que uma nova praça destruiu a praça do costume.


…já sem o seu jardim...

Olhei a Menina Nua, cabisbaixa entre arames, e entrei no Guarani. Ganhei um novo ânimo, porque só nesta cidade se toma por 85 cêntimos o melhor cimbalino do Mundo ao som do piano. 


Saudei o D. Pedro que resistiu, valente, à rotação a que fora condenado. De costas voltadas, despreza as modas, repousando o olhar nas Cardosas. De esguelha, é verdade, porque, ainda inconformado com a Estação de São Bento, prefere mirar o modernismo da Vitália. Egito Gonçalves explicou que "razão teve el-rei para doar à invicta cidade o coração, mas esse posto a salvo no resguardo prateado da Lapa: ali ouve missas, concertos de órgão. Longe do corpo, nada o perturba, goza as flores das beatas, o repouso do guerreiro".

Foto Dino Gonçalves - 2017

Subi os Clérigos, vigiado pela torre, tão alta que inspirou Jorge de Sena a acreditar que com ela a solidão se pode tornar humana. Lembrei-me dos tempos de criança em que cobiçava os brinquedos do Bazar Esmeriz enquanto a minha avó fazia compras na Aveleda, onde me davam pastilhas de mentol, do Tavares Martins enfiado na sua livraria mágica.


Na velha rua, aflita, deserta e velha, sobram as lojas de vestidos de noiva, talvez porque infeliz e esquecida, se metamorfoseou numa daquelas donzelas desenganadas que passavam décadas cuidando do enxoval e esperando a chegada do prometido noivo, que nunca regressaria da viagem em busca da fortuna no Brasil. 
Aterrado com o chão de granito sarapintado das Galerias de Paris, trepei a escadaria da Praça de Lisboa, que foi feira e estacionamento antes de ser uma galeria com cafés e livrarias. Agora que o fast food morreu, mais não é que uma tampa vazia, com aba betonada.


Estátua de D. António Ferreira Gomes – escultor Arlindo Rocha - 1991

Do outro lado da praça, alguém que não apreciava o nosso querido bispo António inspirou-se no Batman para o esculpir em formato de morcego.
Atravessei a Cordoaria, mal iluminada por horríveis pimenteiros. Perdeu a má fama, mas sucumbiu ao mau gosto; a sua magia deve estar enterrada nas campas rasas que fazem a vez de bancos. Instalaram bonecos em posições duvidosas, mas esvaziou-se de gente de corpo e alma, deixando o António Nobre mais só entre os gordos plátanos que sobreviveram ao vandalismo bacoco.


...mais conhecido pelo Piolho

Apreciei as novas tílias envergonhadas plantadas às três pancadas à porta do Piolho, onde reinava grande animação, e resisti a entrar na Carlos Alberto careca que deve ao Ricardo Figueiredo não ser hoje um tanque de rega. Admirei o Art Deco dos Cunhas que ainda prometem novidades sob o seu pavão emplumado que desafia os Leões.
Na Gomes Fernandes, ao lado da neonizada Quinta do Paço, onde se comprava nata e que agora anuncia "ecléres e chantilly", trespassa-se a loja com os bustos de halterofilistas que seguravam um desaparecido tolde.


Desci a Rua de Ceuta, evitei o túnel da discórdia e cheguei, enregelado e desanimado, ao meu carro. Guiando e ouvindo Pedro Abrunhosa na rádio, pensei que a nostalgia era um mau sinal, prenúncio da meia-idade. Chegado a casa, folheei o jornal e li que, em Madrid, havia quem garantisse que se amarraria às árvores para evitar o camartelo (ainda por cima português) da modernidade. Pensei no Pedro e no Coliseu e arrependi-me de não ter ido até à estátua do Garrett, pedir-lhe coragem emprestada para ir para a rua gritar "Basta!". »

Escolhemos este belíssimo texto porque nós, que tantos anos percorremos todos estes caminhos, sentimos a mesma nostalgia e indignação.

O Porto visto por Richard Zimler – 2 vídeos
https://www.youtube.com/watch?v=wDMfhIUrRcE

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