2.3.2 - Bairro da Victória - III
Sendo nossa intenção escrever sobre a Rua do Almada, pareceu-nos que antes de a apresentar, deveríamos fazer as considerações que se segue.
Na sua importantíssima obra sobre o Porto do séc. XVIII, A.R.C., surpreendentemente, não se refere uma só vez a João de Almada e Melo. Tanto no urbanismo como nas estruturas política, económica e cultural, João de Almada e Melo e seu filho Francisco de Almada e Mendonça foram os impulsionadores das grandes transformações que se deram na cidade na segunda metade do séc. XVIII e primeiros anos do XIX. Na História do Porto coordenada pelo Professor Oliveira Ramos lemos: “Na segunda metade do séc. XVIII, momento de grande dinamismo económico e demográfico, urgia resolver três problemas centrais, cuja solução irá constituir o cerne das realizações urbanísticas da Junta das Obras Públicas. Tratava-se de dar dignidade e monumentalidade à Praça da Ribeira, centro comercial da urbe, e de melhorar as comunicações entre esse centro e a zona alta da cidade, cada vez mais populosa. Paralelamente, tornava-se necessário ordenar o crescimento da zona extramuros, que estava a processar-se de uma forma rápida e desorganizada… Com a abertura de novas ruas, pretende-se não só definir as grandes linhas de expansão da cidade extramuros, mas ainda facilitar as principais ligações entre a cidade e o seu “interland. Assim, as novas vias integram-se num plano mais geral de regularização das velhas estradas que ligam o Porto a Braga (Rua do Almada - Campo de Santo Ovídio – Rua do Sério), à Póvoa (Cordoaria – Praça dos Ferradores – Ruas de Cedofeita – Carvalhido), a Penafiel e ao Douro (Batalha – Rua de Santa Catarina – Praça da Aguardente)… O crescimento do Porto e o alargamento e centralização das funções do Estado na perspectiva do despotismo esclarecido, obrigam à implementação de novos organismos e equipamentos públicos em domínios diversos, desde a assistência ao ensino, do policiamento ao abastecimento e à organização económica”. De referir que foi sob o seu governo da cidade que se reconstruiu a Cadeia e Tribunal da Relação, e se edificaram o Hospital Novo da Misericórdia, hoje Hospital de Santo António, o Quartel de Santo Ovídio, a Academia de Marinha e Comércio, o Real Teatro de S. João e outras importantes obras.
Porém, não nos parece tão surpreendente este silêncio de A.R.C. sobre João de Almada, pois estamos convencidos que uma boa parte da população não apoiava as medidas que estavam a ser tomadas pelo governador por razões várias:
- João de Almada e Melo foi enviado para o Porto, que conhecia bem e onde tinha uma residência, pelo “todo-poderoso” Marquês de Pombal com a primeira função de “descobrir” e castigar os responsáveis pela Revolta dos Taberneiros, o que fez zelosamente, seguramente demasiado. Foram condenados 478 réus, dos quais 26 à pena de morte e efectivamente enforcados 17. Em lugar próprio trataremos mais pormenorizadamente esta tragédia. Foi, portanto um início de governo muito impopular.
- O povo da cidade desconhecia os planos das grandes transformações, pois estes estavam restringidos aos gabinetes dos dirigentes.
- As construções das novas vias exigiam grandes demolições e incómodos, tais como, muitos desalojados e avultados prejuízos para as famílias atingidas.
- A Junta das Obras públicas era subvencionada pelo imposto de um real por cada quartilho (1/2 litro) de vinho que entrasse na cidade, o que novamente aumentou o preço deste produto tão consumido e importante na economia familiar. Lembremos que quando da fundação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, poucos anos antes, o vinho já tinha sido aumentado e foi a razão da Revolta dos Taberneiros.
- Vivia-se em Portugal um período de absolutismo muito duro e castigador, o que era contrário ao centenar espírito livre dos portuenses. O Almada representava-o na sua política intransigente e policial.
- O povo do Porto sempre quis e conseguiu governar-se a si mesmo, apesar de muitas lutas e disputas com o poder central e episcopal. Neste caso estava a ser dominado por um absolutista comandado por Lisboa, tendo junto de si muitas pessoas da sua confiança e algumas não portuenses.
- “ … Sabe-se que houve pelo menos uma pertinaz e eficiente campanha de silêncio, campanha de sistemático esquecimento de João Almada e sua obra… opinam alguns ser esse propósito movido por causa política, acionado pelos partidários da “viradeira” (Março de 1777, quando Pombal pediu a demissão a D. Maria I): muitos, por ressentimento mais que legítimo, em desforço das violências perpetradas pelo “homem de pedras no coração”, e que era o compadre e o esteio de João Almada; outros apenas por interesse pessoal, costas voltadas ao passado, peito egoísta virado ao sol nascente. Fosse como fosse, certo é que o nome de João Almada foi obscurecido, quase apagado da memória pública portuense, para só reflorir na terceira década de oitocentos aquando da ressurreição do nome, também bem afundado no esquecimento popular, do próprio Sebastião Carvalho.” In O Tripeiro, Série VI, Ano XII.
- É significativo que não exista qualquer representação, pictórica ou outra, de João Almada. O militar inglês Arthur William Costigan (em Cartas sobre a sociedade e os costumes de Portugal - 1778/9, traduzidas por Augusto Reis Machado), que viveu no Porto em casa do consul John Witehead, dá-nos dele a seguinte descrição: “Sua Excelência é de muita idade e parace-se muito com um esqueleto; tem o corpo fraco e pequeno, nariz em bico de águia, acentuadamente curvo. Lamenta assiduamente os pecados da mocidade, melhor, o pecado, pois no respeitante a excessos a gente deste paíz só conhece um; foi este, confessa ele, que o reduziu a tão deplorável situação. É diminuta a sua capacidade e não dispõe de talento, embora lhe sobre boa vontade e o desejo de exercer o cargo com imparcialidade. Pratica todo o bem que pode e não faz mal a ninguém, apesar de muitas vezes poder fazê-lo. Eis uma rara e louvável qualidade, pois a maior parte dos portugueses, quando investidos de autoridade exercem-na plenamente, fazendo aos outros o maior mal que podem".
- Por todas as razões que expusemos, não nos surpreende que o Padre Agostinho Rebelo da Costa, um conservador avesso a grandes mudanças, considerasse João de Almada e Melo personagem não recomendável, daí o seu silêncio “ensurdecedor” pela sua impossibilidade de escrever contra ele.
Por curiosidade referimos o seguinte: João de Almada casou, aos 48 anos , com D. Ana Joaquina de Lencastre, em 1752. Do casamento nasceram dois filhos, tendo sido seu sucessor no cargo de Corregedor o segundo, Francisco. O mesmo Arthur Costigan descreve D. Ana Joaquina e seus filhos da forma seguinte: “ Bondosa e cortês, alta e bem feita, outrora bela, pintada até às orelhas e por toda a parte, cobrindo-se de pó de arroz para disfarçar a pintura. Apesar dos seus numerosos filhos de três maridos (dois, na verdade), pois foi muito pretendida pelas suas qualidades pessoais e pela sua nobre ascendência, ainda é bela. Esses 20 filhos são notáveis: os rapazes por uma estupidez que resistiu a todos os professores, embora, devido à influência materna, ocupem lugares importantes na Igreja, no Exército e na Justiça (o que não inibe a incapacidade dos mesmos). As raparigas, pela sua leviandade, até neste país notada. Mercê do facto, à respeitável senhora os gracejadores do país aplicaram o cognome de mãe dos burros”.
As referências aos escritos de Arthur Costigan foram recolhidas no Boletim dos Amigos do Porto de 1960, Vol. III.
Crescimento da população do Porto entre1758 e 1900 – História de Portugal coordenada por Oliveira Ramos
Igreja e postigo de Santo Eloi e muralha fernandina antes de ser tapado o postigo e aberta a Porta de Santo Eloi, posteriormente do Almada.
Para que a Rua do Almada tivesse a utilidade que se pretendia, ligar de forma rápida a Praça da Ribeira ao Campo de Santo Ovídio, seria preciso resolver o estrangulamento provocado pelo estreito Postigo de Santo Eloi, tapando-o, e construir uma nova porta larga mesmo em frente à Rua da Hortas, hoje do Almada. Houve que a Câmara e os frades Loios chegassem a acordo para a abertura de uma praça em frente à porta da sua Igreja, sem que a Câmara tivesse qualquer despesa. Assim, concordaram, em Julho de 1764, que os frades cedessem parte do adro da sua igreja e comprassem várias casas existentes em frente, demolindo-as por sua conta. Em troca receberiam o corredor intramuros que ia da nova porta até à Porta dos Carros, em frente aos Congregados.
Desta forma, destruídas as referidas casas e mais uma parte do adro, nasceria uma larga praça, hoje Praça dos Loios, na qual seria construída, pela Câmara, a nova Porta de Santo Eloi, terminada em 1766. Em 1794 os frades foram autorizados a demolir a muralha que dava para a Praça Nova das Hortas e a construir um majestoso edifício com a frontaria para esta praça. Em 1833, por decreto de D. Pedro IV, foram os seus bens confiscados, não estando ainda terminadas as obras. A igreja e o mosteiro, virados para a Praça dos Loios, foram destruídos por estarem em estado ruinoso, em 1833
Mais tarde foi adquirido por Manuel Cardoso dos Santos, brasileiro de torna viagem, que o comprou por oitenta contos de reis com obrigação de concluir o palácio segundo o antigo projecto, tendo sido terminado, em 8 de Junho de 1853, pela sua viúva. Daí, segundo Horácio Marçal, dever-se-ia chamar Palácio da Cardosa e não das Cardosas. Blog Porto Sentido
Planta do bairro das Laranjeiras e rompimento da Rua do Almada, por Francisco Xavier do Rego, 1761 – História de Portugal do Dr. Artur de Magalhães Basto – Planta existente no Gabinete de História da Cidade
Analisando esta planta sugere-nos fazer os seguintes comentários:
- A parte inicial da actual Rua do Almada chamava-se Rua das Hortas, e terminava na de S. António dos Lavadouros, depois dos Lavadouros, hoje Rua Elíseo de Melo. Parte dela foi destruída quando da abertura da Avenida dos Aliados. No mapa a R. de S. António dos Lavadouros seguiria, para poente, pela antiga Rua da Picaria, que era no lado Norte da actual Praça de Filipa de Lencastre onde ainda existe a casa em que esteve instalado o tribunal que absolveu Camilo e Ana Plácido. A actual Rua da Picaria era a antiga Travessa da Picaria, que termina na Praça da Conceição, hoje com o horrível nome de Mompilher.
- A rua prevista para ser iniciada junto aos lavadouros de cima até à confluência com a Rua do Almada e Praça de Santo Ovídio não foi construída. Existia sim a Travessa da Douda ou da Doida, que veio a chamar-se Rua das Liceiras e, mais tarde, do Alferes Malheiro.
- A parte nascente do Monte da Douda foi destruída, possivelmente para a construção da Igreja da Trindade. Muitos anos ali se encontrou uma inestética pedreira.
- A rua marcada com “rua que se abre” nunca chegou a sê-lo. O mesmo aconteceu com a rua desenhada desde a Rua de Santo Ovídio às Liceiras.
- A começar na Praça da Conceição, para nascente, já está desenhada as Travessas do Pinheiro e do Laranjal, actual Rua de Ricardo Jorge.
Em 29 de Julho de 1760 D. José I autorizou a construção da Rua do Almada. As obras de abertura e calcetamento começaram em 1761 e duraram até 1785. Foi delineada por Francisco Xavier do Rego, autor da planta acima. Este escreveu na sua planta: “ A nova rua tem bem meio quinto de légua de comprido; pareceu preciso alargar-se a nova rua desde a boca da dita Rua das Hortas até ao fim da rua delineada, principiando logo em 32 palmos de largo, que é mais 2 palmos do que tem a Rua das Hortas, e acabando em 52 palmos junto de …(?) e isto para emendar a pouca largura que tem a Rua das Hortas e não ficar parecendo esta grande rua demasiadamente estreita”. Como se verifica o projectista construiu uma rua 4,40 metros mais estreita no início do que no final! A rua cortou parte do terreno de João Gomes, e o que sobrou veio a chamar-se Quinta do Pinheiro.
A Rua do Almada estende-se por 3 freguesias: Victória, lado poente desde a Rua dos Clérigos à Rua Ricardo Jorge; Cedofeita, lado poente desde Ricardo Jorge à Praça da República; Santo Ildefonso, todo o lado nascente.
Muito interessante comparar esta planta somente 52 anos depois da anterior. Nota-se perfeitamente a rápida evolução que a construção da Rua do Almada, Praça Nova e Praça do Laranjal trouxeram a esta zona da cidade.
Planta de Teles Ferreira de 1892 – a cidade, nesta zona, já é quase a actual. A Avenida dos Aliados foi aberta em 1916.
Comercialmente foi, durante muitos anos, a rua do comécio das ferragens e cutelarias. Hoje ainda tem algumas casas deste ramo. Referindo-se a esta actividade comercial, dizia Sousa Viterbo: "Parecia aos sábados uma feira de gado, tantos eram os burros dos ferreiros sertanejos, que chegavam ajoujados de ceiras de pregos, e partiam carregados de verguinhas de ferro, em feixes, ao longo da albarda, levados pela Rua do Almada acima num trotesinho miúdo e diligente, que batia os grandes lajedos da calçada com um ruído festival de castanholas."
Recordamo-nos bem de duas excelentes livrarias, onde comprávamos os livros escolares: a Simões Lopes e a Educação Nacional. Esta encontrava-se no prédio onde, desde 1820 a 1880 esteve um dos mais movimentados cafés do Porto, o Café das Hortas, de que nos ocuparemos em local próprio.
Actualmente encontra-se lá o Hotel Internacional do Porto – esquina da Rua do Almada com Rua da Fábrica
À esquerda da foto pode ver-se o lado Poente da Garagem d’ O Comércio do Porto. As casas da direita foram destruídas na construção da Praça de Filipa de Lencastre.
Praça D. Filipa de Lencastre antes da abertura da Rua de Ceuta – anos 1940
Casa onde existiu o tribunal em que Camilo foi julgado e absolvido pela sua ligação com Ana Plácido, numa tarde de tal tempestade que o povo dizia que “era Deus que não queria a sua condenação”. Fica na Praça Filipa de Lencastre, esquina com a Rua da Picaria.
Rua do Almada acima da Rua do Alferes Malheiro
Capela do Divino Coração de Jesus, mais conhecida por Capela dos Pestanas, construída entre 1878 e 1888 e desenhada pelo Arqº. José de Macedo Araújo Junior. É a única capela neo-gótica da cidade – Imagem de S. José pelo escultor Soares dos Reis, que se encontra na fachada.
Palacete dos Pestanas – Construída no séc. XIX pela família Pestana da Silva, tinha o maior jardim particular do Porto, excepto o do Palácio de Cristal. Hoje está ocupado por vários prédios, sendo um deles a sede de uma companhia de Seguros proprietária do palacete.