domingo, 14 de agosto de 2016

ARTES E OFÍCIOS - VII

6.24.7 - Artes e Ofícios


Início da rampa da Corticeira, actualmente das carquejeiras – 1909


Rampa da Corticeira – um Ford subiu-a em 32 segundos – foto Aurélio Paz dos Reis - 1905



Rampa da Corticeira - 1860



“No final de 1930, o lisboeta «O Século» enviou ao Porto o repórter Adelino Mendes para ver e contar a vida nas ilhas e bairros pobres da cidade. O jornalista ficou particularmente impressionado com as carquejeiras:
Surgem diante de mim vultos indistintos, cujos contornos, a certa distância, mal se definem. Dir-se-ia que vem ao meu encontro uma fila de ouriços, arrastando-se lenta e dolorosamente pela rampa que conduz ao rio.
– São as mulheres da carqueja! Vão assim, sob estas cargas, até às Antas, até Paranhos, a quase duas léguas de distância, às vezes! (…)
Paramos. As desgraçadas passam, com os enormes feixes às costas, arfando e resfolegando, pela ladeira acima. Assisto à escalada torturante dum calvário que não tem fim. Sobre os muros da rampa, os ouriços humanos depõem, de vinte em vinte metros, os carretos.


Descarregando carqueja

"Os barcos traziam, Douro abaixo, centenas de quilos de carqueja, planta que era usada como acendalha para os fornos das padarias da cidade e para as casas burguesas. A carga era despejada no cais da Corticeira e aí distribuída pelos carregadores, maioritariamente mulheres".


"A cada uma delas tocava carregar um fardo de não menos de 50 quilos de carqueja, subir a árdua Calçada da Corticeira – 210 metros de extensão, uma inclinação de 22% – e daí levar a carqueja aos bairros da cidade, Paranhos, Antas, Carvalhido, distâncias de três, quatro, cinco quilómetros. Os salários eram miseráveis e incertos, dependiam do número de viagens diárias e da carga que elas suportassem.
Pelo menos até ao final da década de 1960, era comum ver homens, mulheres e crianças (algumas com não mais de cinco ou seis anos) a atravessar a cidade carregados como bestas, com pesos muito superiores às suas forças, recurso exclusivamente economicista de quem os contratava (força de expressão, não havia vínculos laborais) e não estava disposto a reduzir os seus lucros recorrendo ao uso de animais de carga ou de veículos motorizados".


"A 22 de Janeiro de 1936, o «Jornal de Notícias» contava um terrível acidente com um homem que descia uma ladeira puxando um carro de carga e que acabou por ficar debaixo do carro, preso nas tiras como se de um animal de carga se tratasse. Quando alguém que assistia à cena perguntou a um polícia porque não autuava o proprietário da carga, a resposta foi:
Não existe nenhum código de posturas que autorize a autuar um homem por excesso de carga. Existe, sim, para os burros…
E quando existia legislação, ninguém velava pelo seu cumprimento. E assim, gerações de mulheres subiram a rampa da Corticeira com 50 quilos de carqueja à cabeça, vergadas quase até ao chão, algumas com um filho pequeno ao colo por não terem a quem o deixar, outras no final da gravidez (há registo de partos que aconteceram na rampa), outras tão doentes que morreram ali mesmo, em plena subida. Eram mulheres em situação desesperada, com filhos para alimentar e nenhuma alternativa, e foram escravizadas de forma vergonhosa e nem sequer às escondidas. A cidade inteira assistia ao seu martírio".


Homenagem às carquejeiras – escultor José Lamas 

Soube há pouco que Arminda Santos, do Clube Unesco do Porto, lançou a ideia de que o alto da Calçada da Corticeira receba um monumento às carquejeiras, proposta que não me parece estar a receber grande apoio. E seria justo esse reconhecimento, a forma possível de reparar uma crueldade perpetuada por tão longos anos.
As cidades não se constroem só de granito, calcário ou tijolo, mas da memória de quem nelas viveu, da sua passagem pelo mesmo espaço que nos toca viver agora, mais ou menos transformado, mais ou menos reconhecível. A toponímia conta-nos isso e lê-se como um romance, basta querer lê-la assim.
Se durante décadas os fornos produziram o pão que a cidade comia foi graças a essas sacrificadas mulheres, a Elisa, a Ermelinda, ou a Palmira a última das carquejeiras, e é justo que quem se acerca ao muro da Corticeira, de costas para as Fontainhas que a cada ano recebem os festejos de S. João, possa deter-se um instante frente à imagem de uma carquejeira, ainda que apenas para um exercício de imaginação: como seria subir aquela rampa todos os dias, várias vezes ao dia, com 50 quilos às costas?
Recordam sempre as cidades os seus estadistas, líderes, homens de poder, e raras vezes o seu povo anónimo, sem rosto, que ajudou a erguê-las, que lhe calcorreou as pedras e as afeiçoou aos pés, e que nelas soltou um último sopro de vida sem que a cidade estremecesse, nem repicassem os sinos, nem sequer uma lágrima aclarasse o escurecido granito.
Terminado que está o seu martírio, vivam pelo menos as carquejeiras na memória da cidade”. In blogue Aventar

Claro que nos recordamos destas mulheres que visitavam as nossas casas e eram ansiosamente esperadas, sobretudo no Inverno quando eram acesos os fogões de sala. Todos os dias o fogão da cozinha era aceso 2 vezes com a carqueja que havia armazenada na cave.

Subindo a Rampa a Corticeira em BT (até aos 2 minutos e 10 segundos) 


Carregadores - eram na sua maioria galegos.




Correio

Testemunho de um morador da província: “Deslocando-se de bicicleta de casa em casa, pelos íngremes e escalavrados caminhos municipais desse tempo.
Chovesse ou torrasse o sol. E de manhã, sobre o cedo. O carteiro trepava a ladeira que dava acesso ao terreiro de trás e, muito sonoramente, proclamava cá em cima: - correio! Logo subia as escadas da varanda com O Primeiro de Janeiro e o Comércio do Porto - ambos já falecidos - porque a assinatura dos jornais era mais cómoda, evitava uma viagem diária à vila para os comprar.
O carteiro vinha fardado de escuro, com uma mola em cada baínha da calça, uma gravata negra e um almirantesco boné na cabeça. Suava, por regra. E deixava um ror de cartas, o meio próprio das pessoas comunicarem à distância, dada a exorbitância do custo das chamadas telefónicas.
Aos sábados também funcionava e tinha-me sempre ansiosamente à sua espera. Era o dia em que recebia a revista Tintim, cuja assinatura anual era invariavelmente o presente de Natal da minha Avó.
Vão lá quatro décadas. As bicicletas estão na moda outra vez (nessa altura, cada família tinha três ou quatro; hoje, em média, apenas dois automóveis...), os carteiros é que não. Apesar de, volvidos uns anos, ocorrer uma mudança extraordinária: passaram a deslocar-se de motorizada”. Autor desconhecido.
Com a evolução das comunicações o correio tornou-se cada vez menos importante. Actualmente recebemos o máximo de 3 correios por semana e, na sua maior parte, facturas de serviços.



A venda de bilhetes da lotaria era, muitas vezes o acrescento à pobre reforma de muitos idosos. Gritavam os últimos números da cautela esperando que fosse do agrado de quem ouvia. Também este ofício quase desapareceu com a entrada de muitos outros jogos de azar ou de sorte...


O Cauteleiro da sorte

4 comentários:

  1. Caro Rui Cunha
    A história do "Século" sobre as pobres "carquegeiras" é de 1930 mas veio escrita num jornal. Agora imagine as monstruosidades dos "comunas" por esse Mundo fora desde 1917 até agora completamente escondidas ou bem camufladas (o enorme Fidel de Castro ...) para que ninguém as conheça ...
    Abraço
    Vasco Themudo

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  2. Na verdade a humanidade sempre sofreu muito com a verdadeira escravatura, que ainda hoje infelizmente existe. Este era uma dos exemplos. Através da História houve sempre os exploradores e os explorados. Vergonhoso é que nos séculos XX e XXI continue esta situação.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá
    Eu creio que a Calçada das corticeiras foi recentemente arranjada.....
    Sim, ficava bem um «monumento» a essas incansaveis trabalhadoras....as Carquejeiras!
    Cumprs
    Augusto

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