quinta-feira, 30 de novembro de 2017

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO- XIV

9.14 - Memórias de Camilo Castelo Branco - I, O burguês do Porto, O portuense no teatro, teatro S. João - pateadas e distúrbios, Janotas tripeiros, Praça da Batalha em noite de representação.


Busto de Camilo Castelo Branco


Sobre Camilo Castelo Branco já nos referimos várias vezes, muito especialmente sobre o seu julgamento e prisão na Cadeia da Relação do Porto nos nossos lançamentos de 18/11/2012, Bairros da Cidade XIX e 30/3/2015, outros edifícios Públicos III.
Porém, no âmbito deste capítulo cabe bem referências suas sobre a vida no Porto
Artur de Magalhães Basto, no seu livro Figuras literárias do Porto, refere várias situações recolhidas de Camilo:










Barbeiro do séc. XIX



“…mas o teatro mais interessante de observar era o de S. João, durante a temporada lírica; este antiquíssimo teatro, que exteriormente dava ideia de uma fábrica de moagens, no interior estava bem arranjado, possuindo um salão de entrada correctamente disposto e um outro no andar nobre. De forma elíptica, posto com elegância; a sala de espectáculos estava bem mobilada, o pano de boca para os lados; nos camarotes viam-se as principais famílias portuenses, ostentando as senhoras ricas “toilettes” e jóias de preço; na plateia velhos “dilettanti” e rapazes da primeira roda, aprumados nas negras casacas, fazem destacar os peitilhos de camisas, onde cintilam os brilhantes das abotoaduras”. Um forasteiro de 1908.


Artur de Magalhães Basto descreve uma noite de ópera, em O Porto do Romantismo: "A enchente é espantosa, e no verão o calor é tão intenso como se “estivesse na câmara de um vapor, em calmaria, por alturas de S. Tomé ou Senegal”, e as pulgas mais abundantes “do que em qualquer galegaria de atrás da Sé”.
O “bufete” vendia sorvetes de diferentes qualidades, a 4 vinténs cada um.
O espectáculo começa e vai decorrendo numa atmosfera pouco tranquilizadora. Rebentam as primeiras palmas, estruge uma formidável pateada. Há bravos e assobios. Corre o pano. Chamados os artistas, estes aparecem no proscénio. A balbúrdia cresce. A pateada torna-se infernal. Os actores investem contra o público, como em 1849, na representação dos Foscaris. São lançados dos camarotes impressos com poesias, respondem-lhes os díscolos arremessando para o palco toda a qualidade de projecteis, até botas velhas. Martelos, cabos de vassouras, tacão, goelas, tudo que faça barulho é posto em movimento. No ar esvoaçam pombas brancas e rodopiam bengalas e mocas e, por vezes, luzem punhais. Partem-se cadeiras inocentes e cabeças apopléticas. Os artistas são enxovalhados. Uma actriz a “italiana Luisa Abbadie, enlouqueceu de repente, na noite de 3/5/1852, depois de ter sido desfeiteada pelo público”.
A chinfrineira é indescritível, os destroços na mobília avultados e o sangue a escorrer das testas abundante… resultado: as autoridades ordenam o encerramento do teatro por alguns dias”.



Certo dia, depois de uma cena deste tipo, a polícia proibiu a entrada de bengalas ou qualquer outro objecto perigoso.
“Os beligerantes, ao terem conhecimento da “ordem superior”, não se intimidaram, antes pelo contrário, nessa noite era de ver como, todos humildes, iam fazer a entrega das suas badines no bengaleiro respectivo. O governador civil rejubilava por ver como as suas determinações eram rigorosamente cumpridas; mas o que ele não sabia era que a cada bengala depositada correspondia um cabo de vassoura, a que previamente de cortara a rama de piaçaba, insidiosamente enfiado pelo colete abaixo duma grande parte daqueles tão submissos quão resignados cumpridores da lei. Escusado será dizer que, nessa noite, no teatro S. João não caiu Tróia, isso não; mas o espectador incauto ou desprevenido veio de lá escorraçado a rabo de vassoura, como qualquer intrometido fraldiqueiro”. O Tripeiro, Volume 2, 1/7/1909.


“Não era sem certos cuidados que algumas famílias se dispunham a ir ao teatro. A mãe dá ordem à criada que faça a ceia; o pai diz ao galego que ponha duas velas de cêbo no lampião de folha. Apenas o jantar (almoço) terminou e o último palito fez a limpeza dentária, vai a família dormir a sesta, porque tem de perder a noite. À hora própria lá segue a família para o teatro, porque é bom ir cedo e sem fadiga. O chefe de família leva duas pistolas no bolso para o que der e vier; atrás, a criada com o merendeiro, os frangos assados, a vitela, as azeitonas, a pingoleta etc. Chegam as damas ao camarote, estendem as mantilhas de lapim para fora da borda e colocam-nas cuidadosamente nuns arcaicos lanceiros de pau que havia nos camarotes; ao fundo a criada senta-se junto ao cesto da ceia. Os espectadores começam a encher o teatro e o Aniceto vem distribuir pelas estantes da orquestra os diversos papeis da partitura; trabalho que faz pacificamente, excepto se algum frequentador das varandas lhe grita de lá; - Oh Clemente, quebraste a infusa! – porque então o homem perde a cabeça, troca os papeis e dá por paus e pedras. 
Os janotas cumprem a sua elegante missão de conquistadores; as damas choram ou sorriem, como as situações da peça o exigem; à hora própria, aproveitam-se os intervalos para a ceia e tudo corre no melhor dos mundos, se os artistas não desafinam e se as tormentas teatrais não provocam as pateadas. 
Que velhos costumes e clássicos hábitos da velha sociedade que dormia a sesta e ia cear ao teatro!” In O Tripeiro, Volume V.
No final das representações os artistas costumavam reunir-se nos cafés do Leandro e no Águia d’Ouro, onde comentavam o decorrer da récita e discutiam as falhas do próximo.


“O meio de transporte habitual das famílias, para o Teatro de S. João, para os bailes, para as romarias, era o famoso carroção, veículo de 4 rodas da forma de um prédio, com duas fachadas laterais de cinco janelas cada uma, e porta ao fundo, a que o passageiro subia por quatro degraus de escada guarnecida por um corrimão. Uma junta de alentados bois de Barroso puxava pelo "monumento”. 
“Havia famílias enormes que não cabiam em duas salas e que se acomodavam num carroção. No Inverno, uma dessas ingentes moles chegava à porta do Teatro S. João. A portinhola abria-se, havia uma escada com corrimão para descer; o carroção começava a despejar senhoras. O pátio do Teatro enchia-se e o carroção continuava sempre a deitar gente. Pasmava-se que ele pudesse conter tantas pessoas, ia-se olhar e encontrava-se ainda, lá dentro, no escuro, a mexer-se e a preparar-se para sair, tanta gente como a que estava fora”. Ramalho Ortigão


“Nas noites de espectáculo a concorrência na Batalha e ruas próximas era sensível e até nos tempos antigos era assinalada pela venda de doces e rebuçados como nos arraiais. A formatura dos trens, o alinhamento das seges, a série de carroções com os bois deitados no chão, a fileira das cadeirinhas, guardadas apenas por algum dos galegos vigilantes, e o agrupamento dos lampiões, defendidos pelos criados menos dormentes, isto em volta do teatro, pareciam um acampamento!” In O Tripeiro, Volume V, 1926.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XIII

9.13 - Memórias de Ramalho Ortigão - II, Descrição de Ramalho por Ricardo Jorge, Passeio dominical no Douro, O carroção segundo Ramalho, O carroção do tio de Ramalho, O fim do carroção do Manel Zé.




Artur de Magalhães Basto em Figuras literárias do Porto


Passeio em barco valboeiro de Avintes – Silva Porto


“Durante o verão o folguedo perdilecto das famílias abonadas eram as merendas e os jantares pelo rio acima, a Quebrantões, ao Freixo, à Pedra Salgada, à Quinta da China. Aos Domingos, depois da missa primeira, o patrão trazia da feira do Anjo a provisão das laranjas e dos pêssegos de Amarante, um melão afiançado, e a indispensável melancia. Um cesto levava as frutas, outro cesto maior e mais abarrotado, coberto pela alvejante toalha de linho de Guimarães levava os talheres, o alguidar de arroz de forno com o pato e o salpicão, a pescada frita, os grossos “moletes” de Valongo e a borracha atestada de vinho maduro da Companhia do Alto Douro. Fretava-se um dos grandes barcos de Avintes, remado por mulheres, um tanto escalavrado, destingido pelas solheiras, semelhante do aspecto da madeira e do cordame a uma velha nora descida para a água de uma horta ribeirinha, cheirando a brôa fresca a cebolinho e a feno. A família toda – o marido, de calça de ganga e chapéu de sol, o mulher, os filhos, a criada com roupinhas minhotas e os dois marçanos, em chinelas de bezerro compradas nas Congostas, camisa de linho caseiro, nisa de briche e chapéu braguêz de copa alta e aguda – tomavam metodicamente assento à ré, sob o toldo branco, rusticamente armado em varas de pinho, como um parreiral suspenso. O açafates com os víveres eram depostos à proa… Pela noite os que, tendo ficado na cidade, tomavam o fresco na alameda das Fontaínhas, viam em baixo na água túmida e glauca, polvilhada de ouro pelo reflexo das estrelas, deslizar de volta as barcas das musicatas, iluminadas das lanternas à veneziana, lentas, misteriosas”. Ramalho Ortigão – Porto 1850

A propósito do famigerado carroção, Ramalho escreve:


“O meio de transporte habitual das famílias, para o Teatro de S. João, para os bailes, para as romarias, era o famoso carroção, veículo de 4 rodas da forma de um prédio, com duas fachadas laterais de cinco janelas cada uma, e porta ao fundo, a que o passageiro subia por quatro degraus de escada guarnecida por um corrimão. Uma junta de alentados bois de Barroso puxava pelo "monumento”. 
“Havia famílias enormes que não cabiam em duas salas e que se acomodavam num carroção. No Inverno, uma dessas ingentes moles chegava à porta do Teatro S. João. A portinhola abria-se, havia uma escada com corrimão para descer; o carroção começava a despejar senhoras. O pátio do Teatro enchia-se e o carroção continuava sempre a deitar gente. Pasmava-se que ele pudesse conter tantas pessoas, ia-se olhar e encontrava-se ainda, lá dentro, no escuro, a mexer-se e a preparar-se para sair, tanta gente como a que estava fora”. Ramalho Ortigão

Vale a pena ler Ramalho Ortigão no seu livro As praias de Portugal, de 1876:



Carroção no Museu do Carro Eléctrico – foto Portojo

E Ramalho continua, sobre o carroção do tio:





 Ramalho termina:

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XII

9.12 - Ramalho Ortigão I, Retrato do portuense, Classe comercial do Porto, O comboio para o Porto, Garrett e Ramalho,Ramalho e Eça de Queiroz, Colégio da Lapa, As Farpas



Ramalho Ortigão – Porto 1836 – Lisboa 1915 – com a farda de sócio da Academia das Ciências.


Ramalho Ortigão – estátua de Leopoldo de Almeida - 1954

“ O portuense é o homem mais delicado, mais serviçal, mais bom homem. Somente há três coisas de que ele não gosta – e nesse ponto é mau brincar com ele. Não gosta de Lisboa. Não gosta da polícia. Não gosta da autoridade. Da autoridade vinga-se desprezando-a. Da polícia vinga-se, resistindo-lhe. De Lisboa vinga-se, recebendo os lisboetas com a mais amável hospitalidade e a mais obsequiosa bizarria”. Ramalho Ortigão – Praias de Portugal - 1876.
Ninguém é grande nem pequeno neste mundo pela vida que leva, pomposa ou obscura. A categoria em que temos de classificar a importância dos homens deduz-se do valor dos actos que eles praticam, das ideias que difundem e dos sentimentos que comunicam aos seus semelhantes. 
E ainda:
Sobrecasaca



João Francisco Allen – 1781- 1848

“Tenho este mesmo sentimento. Quando frequentemente ia trabalhar a Lisboa sentia que o melhor local da cidade era a Estação de Santa Apolónia e o comboio para o Porto”.


Na sua biografia escreveu:
"Maçar o menos possível que seja o meu semelhante, procurando tornar para os que me cercam a existência mais doce, o mundo mais alegre, a sociedade mais justa, tem sido a regra de toda a minha vida particular. O acaso fez de mim um crítico. Foi um desvio de inclinação a que me conservei fiel. O meu fundo é de poeta lírico."


Eça de Queirós e Ramalho Ortigão - “ A Ramalhal figura”, como afirmou Eça de Queirós.




...quando Ramalho Ortigão e eu, convencidos, como o Poeta, que a «tolice tem cabeça de touro», decidimos farpear até à morte a alimária pesada e temerosa.
Advertência a Uma Campanha Alegre, 1890



Assinaturas de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós