sábado, 3 de março de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXIV

9.24 - Ramalho Ortigão em AS FARPAS - II, Jornais do Porto, Jornalistas e escritores do Porto de 1883, Diferença entre os escritores de 1863 e 1883, Artigo de Ramalho mal recebido no Porto.


Mais tarde O Comércio do Porto, iniciado em 2/6/1854

Não leio habitualmente os jornais da província. Não frequentando o café, não tendo clube, não indo ao Grémio, não vendo senão as folhas que me traz a minha casa o correio, confesso humilhado que até os títulos desconhecia de alguns dos jornais portuenses, que leio aqui todos, sistematicamente, do princípio ao fim, fazendo deles há oito dias a grande peça de resistência da minha alimentação mental. Neste ponto devo começar por dizer que o Porto está bastante adiante de Lisboa. A maioria dos periódicos da capital, à parte a controvérsia política sustentada na Imprensa pelos chefes literários dos diversos partidos, não suportam comparação com as folhas portuenses. Os noticiários daqui encerram um conjunto muito mais variado de informações úteis sobre o movimento científico, sobre o movimento literário e sobre o movimento industrial da Europa. Todos os grandes jornais, que são cinco ou seis, contêm um longo artigo doutrinal, grave, versando sobre a questão política do dia, ao modo antigo. Como interesse social e às vezes um pouco chocho, porque, pela sua influência no património intelectual dos homens, a coisa que fizeram ou que deixaram de fazer os poderes públicos importa às vezes muito menos à curiosidade e à direção social do que a simples redondilha popular que um gaiato vai descantando pela rua na ária à moda. Mas o tom geral deste artigo revela sempre um fundo respeitável da aplicação dada ao estudo dos prole mas em voga, uma atitude de crítica serena, uma honestidade aparente, dentro de uma forma comedida e correta.


Publicado em folhetim de jornal

As correspondências de Lisboa em geral e algumas enviadas das principais cidades da província são feitas com habilidade técnica e com um grande zelo de alvissaragem minudente e fiel. O folhetim propriamente dito, isto é, a crónica semanal das ideias, dos costumes, da arte e da moda acabou na Imprensa portuense, como na Imprensa de toda a parte. Somente nos periódicos do Porto o espírito literário do folhetim não se infiltrou, como em Paris, nas demais secção da folha. Em França o folhetim deixou de ser o que antigamente era, porque se espraiou e invadiu o jornal todo. Entre nós, ao contrário, o folhetim foi absorvido pelo resto, e não desapareceu porque se transformasse, desapareceu porque acabou.»

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Café Guichard - Praça D. Pedro

«A antiga geração literária do Guichard, da porta do Moré e da Águia de Ouro extinguiu-se ou expatriou-se, sem deixar sucessores na publicidade portuense. Evaristo Basto, António Coelho Lousada, Augusto Soromenho, Camilo Castelo Branco, Ricardo Guimarães não têm no atual jornalismo portuense quem dê ideia alguma do papel que eles representaram no jornalismo de há vinte anos
A geração nova tem uma disciplina, um método, uma linha de conduta social, um propósito político, um destino filosófico. Eu sou de uma idade transitória, vim obscuramente num período de transformação, com uma ala de sapadores, e pertenço à pequena companhia antipática dos bola-abaixo. Mas aqueles a cujo lado trabalhei em novo, e que fizeram falar de si, eram personalidades literárias inteiramente diferentes dos jovens escritores de hoje.


Revista de turismo – 1919 – In blogue Almanaque Republicano

Os antigos cronistas portuenses, cujos nomes recordo com saudosa e magoada estima, não tinham filosofia social, não tinham espírito algum de seita ou de partido. Hoje é-se necessariamente revolucionário ou conservador, ou se é pela república ou pela monarquia; há uma grande arte regeneradora e uma arte progressista, um ideal demagógico feito carne em Magalhães Lima e um ideal constituinte personificado em José Dias Ferreira, divergente do atual regime monárquico e bem assim dos sistemas propostos pela democracia radical.
Noutro tempo os homens de espírito não eram mais monárquicos liberais do que eram republicanos ou do que eram legitimistas. No jornalismo contemporâneo toda a pena é uma arma de combate. No jornalismo de outrora a pena para um verdadeiro escritor era apenas um puro instrumento de poesia. Os combates travavam-se unicamente a cassetete com os homens e a olho com as mulheres.
O único inimigo comum para os últimos dos românticos no jornalismo portuense era a estupidez humana, representada pelo honesto burguês da Rua das Flores e da Rua dos Ingleses, e era o espírito imobilizante de rotina, simbolizado no carroção veículo de família puxado a bois e inventado pelo segeiro Manuel José de Oliveira.
Para resistir a estas duas influências e para as combater opunha-se-lhes, arvorado em sistema, o amor da aventura e da violência dos contrastes, a toilette espetaculosa, o movimento, o barulho, a troça, a pancadaria, o escândalo. 


Para o fim de irritar o burguês e de o fazer estourar nos seus redutos, de apoplexia ou de raiva, traziam-se casacas de alamares, laços de gravata de palmo e meio de superfície, coletes vermelhos, cabelos até aos ombros. Andava-se de dia pelas ruas e ia-se nos domingos ao Jardim de S. Lázaro levando enrolado no busto um plaid de quadrados amarelos, encarnados e verdes. Nunca se largavam as esporas, traziam-se as calças à hussard, o cassetete de cana-da-índia com uma asa de couro numa extremidade, um galho de veado na outra, e uma baioneta dentro. Cultivavam-se de frente seis namoros a um tempo, mantinham-se paixões funestas por meio de cartas em estilo incendiário. Era-se preso ou admoestado pela polícia uma vez por semana. Rebentavam-se cavalos e rebentavam-se batotas. As pateadas memoráveis no Teatro de S. João, à Dabedeille e à Bolonni, à Giordano e à Ponti, deixavam em estilhas as bancadas da sala. De uma vez, António Girão, em pé sobre um banco, com um barrote do soalho em punho, ameaçou a autoridade de que deitaria abaixo o lustre se a guarda municipal penetrasse na plateia. De outra vez, numa empresa de José Lombardi, os coristas e os comparsas, armados de paus apareceram no palco com o pano em cima e desafiaram os espectadores pateantes; o público subiu à cena, e, depois de uma terrível luta de homem a homem, foi varrida a companhia toda para a rua, à bordoada. Metade das senhoras que assistiram a esse espetáculo nunca visto saíram dos camarotes para os seus carroções levadas em braços, desmaiadas ou em convulsões de nervos.
O ar fatal era de rigor nas salas. Os poetas usavam no pulso um misterioso bracelete de mulher, uma pequena caveira de ferro na gravata ou no anel; e todo o mundo literário, à noite, nos bailes, era magro, pálido, impenetrável como um cofre de trágicos arcanos. O sujeito dado à metrificação via deslizar a valsa encostado a uma ombreira de porta, terrível, de monóculo no olho e patchouli no lenço.


De que partido político era o Soromenho, o Lousada, o Soares de Passos, o Arnaldo Gama, o Camilo, o Ricardo? Nunca ninguém o soube, nem lhes perguntou por isso. E todos eles escreveram sucessivamente em jornais de todos os matizes do tempo, patuleias, cabralistas, cartistas, legitimistas, etc. A arte constituía para os que a cultivavam um terreno neutral e autónomo, onde cada um armava a sua tenda, arvorava o seu nome como um pavilhão de guerra e combatia independentemente pela sua própria conta e risco.


De uma vez, há de haver vinte anos, no Jornal do Porto, tendo faltado a carta do correspondente de Lisboa, eu mesmo improvisei à última da hora uma correspondência da capital, em duas grandes colunas de verrina. Esta correspondência infeliz esteve para fazer perder as eleições municipais aos amigos políticos do jornal. Cruz Coutinho, o mais honrado e o mais benévolo dos homens, que tinha feito do Jornal do Porto a sua família, e que tratava os seus redatores como seus filhos, veio correndo espavorido ao escritório da redação, vibrando da mais justa cólera, com o jornal ainda fresco de tinta e de injúrias aberto na mão.


— Como diabo tinha o estúpido do correspondente de Lisboa escrito um artigo daqueles, e como, achando-me eu no escritório à chegada do correio, o deixara passar e aparecer impresso na folha da manhã?
E, tomando conhecimento do ocorrido, num a recrudescência de ira:
— Oh! maldito homem! — me bradou ele — pois você não conhece a atitude política do jornal na grave conjuntura presente? Você não tem visto os artigos de fundo que andamos a publicar há mais de um mês?!
A triste verdade é que eu, efetivamente, nunca vira semelhantes artigos, e a minha única desculpa foi que estava contratado a tanto por mês para escrever no jornal, mas não para o ler. E devo acrescentar agora que, tendo feito parte durante uns poucos de anos da redação efetiva daquele periódico, e enchendo nele regularmente duas ou três colunas por dia, eu nunca então soube, nem ainda hoje sei, que política era a dele no tempo em que eu lá estive!
Presentemente, pelo que tenho lido durante os últimos oito dias, os escritores são incomparavelmente mais políticos do que outrora. O senhor Fontes e o senhor Manuel de Arriaga, o senhor Braamcamp e o senhor José Dias tornaram-se elementos de prosa, as imaginações renderam-se-lhes, a intriga constitucional substituiu nos espíritos a velha intriga poética, e os jornalistas são talvez um pouco mais homens de Estado do que homens de letras.
Para honra destes amáveis escritores cumpre todavia dizer que, se lhes falta como poetas uma ponta de desdém indispensável para não deixar materializar a arte pela familiaridade do vulgo, não lhes falta decerto como estilistas a técnica da profissão.
Não se pode empregar mais zelo na escolha dos vocábulos. Não se pode pôr mais esmero em enobrecer a dicção.
É principalmente nos textos dos correspondentes da província que mais energicamente se manifesta esse escrúpulo na pureza da palavra. nalgumas dessas correspondências a preocupação da retórica atinge quase o estado patológico de uma monomania de sublimidade.
Coisa notável, demonstrada pela observação: o amor grandioso é tanto mais profundo e tanto mais voraz quanto mais pequeno é o lugar de que se escreve! Nada que se compare em majestade aos rasgos de pena com que de Ovar, de Espinho ou de Estarreja se nos conta que ali chegou o polícia 34 para fiscalizar a decência da praia, que choveu na véspera, ou que por deliberação camarária se está pintando o candeeiro da Rua Nova, em frente da caixa do correio! Decididamente — e é triste ponderá-lo! — a literatura é tanto mais pomposa quanto mais provincial.

6 comentários:

  1. Sr. Rui Cunha, assim não vamos lá...

    Que tenha transcrito o texto de Ramalho Ortigão mesmo que por intermédio do Sr. António Coelho, ainda estou como o outro (embora tenha trabalhado para si sem remuneração). Agora, que coloque as minhas notas (palavras minhas, sim, minhas!), assim não...
    Por favor retire-as e já agora tenha o respeito que se deve ao trabalho dos outros (e ao seu, que reconheço que também o tem) e retire a fotografia que tem o logótipo do meu blogue ou indique a sua FONTE..

    Cumprimentos,
    Nuno Cruz

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  2. Boa tarde Sr, Nuno Cruz,
    Tal como na vez anterior desconhecia que o texto tinha sido tirado do seu blogue. Claro que vou fazer referência ao facto.
    Quando às suas palavras não encontrei a quais se refere, por favor indique quais são. Para mim eram todas do Ramalho.
    Não aceito, e até me surpreende, o modo tão abespinhado com que se me refere, pois na verdade sempre referi onde recolhi as informações, inclusive as suas. Terei de, sempre que recebo informações ir visitar o seu blogue para ver se foram tiradas de lá?
    Compreendo que me informe que são, mas de uma forma mais suave e compreensiva, pois o não refiro por falta de informação.
    Também peço que me informe qual a fotografia que tem o seu logotipo, pois a não encontro.
    Se voltar a acontecer bastará dizer-mo que imediatamente o referirei.


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  3. Verifique a introdução do lançamento anterior onde referi o seu blogue.

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  4. Bom dia,

    As minhas palavras são:
    « 1- Esta era uma característica da linguagem do Porto no século XIX. José Leite de Vasconcelos (...) grosso modo o Porto de 1883 contra o Porto de 1863.
    PF confirme aqui: http://aportanobre.blogs.sapo.pt/o-porto-em-1883-n-o-1-8557

    A imagem é a da Ribeira no século 19 e apresenta as iniciais da Porta Nobre - PŊ - no centro. PF confirme aqui:
    http://aportanobre.blogs.sapo.pt/o-porto-em-1883-n-o-2-8938

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  5. Bom dia,

    Obrigado.

    Cumprimentos,
    Nuno Cruz

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