4.3 – Recolhimento do Anjo
A Torre dos Clérigos e, à esquerda, o Recolhimento do Anjo – gravura de J. Holland
“1672, marca o ano em que Dª Helena Pereira decide solicitar autorização para aqui levantar um Recolhimento. Esta Senhora, viúva, era possuidora de uma assinalável fortuna que seu marido, Gonçalo de Borges Pinto, proprietário de Mesão Frio e produtor de vinho, lhe havia legado na hora de sua morte, em 1661…
Bem relacionada, Dª Helena Pereira consegue o apoio da Câmara do Porto, de dois Bispos da Cidade (D. Nicolau Monteiro e D. João de Sousa) e ainda da Rainha Maria Francisca de Sabóia, o que conduzirá à ordem para a utilização do local do Anjo e da sua ermida, para levantar um Recolhimento, “(…) para órfãs, donzelas nobres e pessoas de conhecida virtude e limpo sangue (…)” a que seria dado o nome, por sugestão da Rainha, Recolhimento de Santa Isabel. O Recolhimento localizava-se mesmo ao lado do conjunto dos Clérigos, mas a via que separava a sua Cerca dos Clérigos era, no dizer da altura, uma viela imunda…
O recurso da mulher abandonada, ou mesmo viúva, era casar segunda vez. Mas como para casar era preciso dote, fácil é de imaginar que a mulher, regra geral, acabava por cair numa situação de tal modo complexa que passava a dedicar a tarefas menos nobres, para poder sobreviver.
Por isso, as Casas de Recolhimento femininas constituíam uma protecção, podendo ser ainda casas de Regeneração (para as pecadoras), tendo apoios vários, desde a Câmara às instâncias reais.
A fundadora dava o exemplo, praticando uma vida austera e de desapego dos bens materiais. Praticou uma Administração rigorosa e legou ao Recolhimento todos os seus bens e as suas imensas propriedades, o que permitiria uma vida relativamente desafogada à comunidade.
A organização dependia do governo da Regente e enquanto Dª Helena Pereira foi viva, essa gestão foi completamente independente de factores estranhos ao Recolhimento. Foi com a sua morte que o Bispo do Porto passou a tomar parte activa no governo do Recolhimento.
De resto há aqui um factor fascinante. A mulher, tida como um “elemento da casa”, foi, no caso dos Recolhimentos femininos, uma entidade com uma enorme capacidade de gestão.
A azáfama “empresarial” chegava ao ponto de convidar as Recolhidas, muitas delas com muitas posses, a investir o dinheiro, nomeadamente em empréstimos e aquisições de propriedades.
Digamos que era algo de demasiado terreno, mas fundamental para combater a falta de verbas com as despesas associadas aos gastos da Instituição. Portanto, Dª Isabel Pereira foi uma gestora de um imenso Património que incluía rendas, bens cedidos e os empréstimos realizados. Tudo “truques” que iriam permitir a continuidade da Instituição.
De algum modo, para algumas mulheres, o trabalho realizado no Recolhimento foi uma fonte de conhecimento e de emancipação ao permitir-lhes aplicar princípios que, de um modo normal, eram dados exclusivamente ao homem.
A Rainha Santa Isabel foi escolhida para Padroeira pela Rainha Maria Francisca de Sabóia, que por ela tinha grande culto. Nos Recolhimentos e Mosteiros, a figura do patrono representava o exemplo de modo de vida a seguir, que se estendia às roupas (de um modo geral escuras), o que era muito respeitado pelas Recolhidas, pois resguardavam a pessoa e acordavam-na para a responsabilidade da sua escolha.
A Regra da Instituição era a da Ordem Terceira de S. Francisco, fundada no Porto em 1633. Uma Ordem Terceira era a possibilidade que o cidadão comum tinha de levar uma vida religiosa à qual, por razões várias, nunca se podia dedicar na integralidade.
De resto, a ligação entre a fundadora Dª Helena Pereira e os Franciscanos era enorme, ao ponto de apenas estes estarem presentes nas suas exéquias fúnebres”. In site marabo2012.wordpress.com
Recolhimento do Anjo – à esquerda – pintura do Barão de Forrester
"Mui além da área do Mercado ia a do Recolhimento com sua capela e cerca, pois ocupava a rua São Filipe Nery, então estreita viela de passagem, e parte das ruas das Carmelitas e da Academia (local do Colégio dos Órfãos), também apertadas ruelas. O edifício era de um andar único, paredes lisas, modesta arquitectura. A meio da fachada três arcos ajeitavam o átrio de entrada assentando sobre eles o coro com três janelas correspondentes aos arcos. Adentro da portaria corriam as coisas à moda dos conventos - rodas, locutórios gradeados - porque, como essas casas, fora construído o Recolhimento e como elas gozava dos mesmos privilégios, embora não houvesse profissão para as recolhidas. A fachada dos dormitórios era bem monástica com suas janelinhas gradeadas, quase postigos. No interior quebrava em quadrado o claustro com chafariz ao meio, na qual a água repuxava em uma taça de pedra; a cerca descia até à viela de S. Filipe.
Ora, para sabermos como corria a vida interna do Recolhimento, vamos ver as mais frisantes passagens do novo [1688] Estatuto.
O Rei nomeia o administrador [pese embora existisse um regente que nos seus primeiros tempos foi a fundadora, Dª Helena Pereira] que será pessoa eclesiástica de autoridade cabendo-lhe visitar o recolhimento, averiguar a conduta das recolhidas, sindicar das queixas, regular os castigos pelas culpas e nomear o pessoal administrativo.
As recolhidas não passarão de vinte e uma [contudo nos últimos tempos chegou-se a contar setenta e duas recolhidas com criadas e porcionistas] para se não destruir a observância crescendo o número, devem ser naturais do Porto ou do Bispado e nobres por ascendência, donzelas, pobres e mansas de condição. As órfãs de pai e mãe preferem quaisquer outras. O mínimo de admissão é de doze anos e só até aos quarenta anos devem receber asilo. Ás porcionistas exigir-se-ão iguais requisitos. Poderão admitir-se mulheres casadas com maridos ausentes e viúvas honestas até aos quarenta anos, pagando 20$000 reis anuais adiantadamente para seu sustento…
…Guardar-se-há igual clausura à dos mosteiros e por isso fora de pais, mães, avós e irmãos não deve a regente permitir conversas no locutório; mas se a parentes do 2º grau der licença assistirá então de parte que os ouça e veja. Ao ouvirem missa deverão as recolhidas correr a cortina da grade do coro, de forma a que não possam ser vistas de fora. Quando para exercitarem os seus ofícios, tiverem de entrar, o confessor, o capelão, o sangrador, o cirurgião e o hortelão os acompanhará a regente e outra recolhida a tocar à frente uma campainha para se saber que entra um dos ditos e possam, por isso, as recolhidas tomar suas celas ou comporem-se.
(...) vestir-se-ão as recolhidas de cor parda e tocar-se-ão decentemente sem nenhum género de joias, adereços, fitas ou outros enfeitos de vaidade, usaram sapatas e chinelas negras. Como ornatos nas celas somente poderão usar um painel ou um crucifixo. As porcionistas vestirão de igual modo e excedendo-se alguma seja censurada pela regente e persistindo seja expulsa pelo administrador.
Toda a gente da casa se levantará às 5 horas desde o dia da Páscoa ao da exaltação da cruz (14 de Setembro) e desde este dia ao outro, às 6 horas. Cada semana sua recolhida tangerá a tais horas a campainha e ao depois irá pelos dormitórios despertando a todas batendo-lhes na porta e dizendo-lhes - Bendito e louvado seja o S. Sacramento e a Puríssima Conceição da Virgem Maria Nossa Senhora concebida sem mácula do pecado original - ao que lhe será respondido -Para sempre, Amen - treplicando a outra - Levante-se irmã, vamos louvar a Deus nosso senhor. A seguir acenderá a luz no coro, no qual entrarão as recolhidas em forma de comunidade ajoelhando em seus lugares por ordem de antiguidade. Ai ouvirão uma meditação dum livro espiritual, entoarão a antífona Veni Sancte Spiritus, farão oração mental por meia hora entoado depois a Salve Rainha e agratiam tuam, a reza dos Terceiros e por fim ouvirão missa. Após estas obrigações espirituais podem recolher às celas ou ficar no coro se o desejarem até ás 8 horas no inverno e 7 no verão, porque a essas horas devem passar à casa dos lavores até ás 10 de verão e 11 de inverno. Então, entrarão no refeitório havendo lição espiritual ou hagiológica durante as refeições. Acabada a mesa cabe ir ao coro dar graças a Deus. À uma hora voltam aos lavores até ás 5 volvendo ao coro a ouvir nova lição espiritual com meia hora de oração mental. Às 6 no inverno e às 8 no verão se tangerá para segunda mesa devendo-se graças a Deus, ao depois, no coro. E por fim a ele voltarão para um quarto de hora de exame de consciência às 8 de inverno e 9 de verão. E acabando-o se recolhem às celas devendo-se guardar inviolável silêncio desde esse momento até a missa do dia seguinte.
Não se dirá, pois, que fosse uma vida agradável ou deleitosa.
Quebrar o silêncio, faltar à hora do coro e culpas semelhantes, implicam suave e particular admoestação da regente à primeira vez, diante da comunidade; jejum de pão e água e a penitência do Rosário da Senhora à segunda vez. As duplas reincidências castigá-las-há o administrador consoante o seu entender. As culpas graves, desobediência, palavras injuriosas e descompostas, intrigas e discórdias, casamento tratado sem ordem do administrador, escrever e receber cartas de amor, falar de dia ou de noite das janelas ou de outros lugares com qualquer homem, violar a clausura subindo a muros ou paredes, implicavam a pena de expulsão.
Afim da regente tomar conhecimento das diversas culpas elegerá ela particularmente duas recolhidas de mais virtude, prudência e capacidade para zelarem os excessos que virem e souberem, comunicando-lhos ao depois”. Carlos Passos em Lembranças da Terra
Durante o cerco do Porto as habitantes foram mudadas para o Convento de S. Bento de Avé Maria e o recolhimento foi hospital de sangue. Em 13 de Novembro de 1837 iniciou-se a demolição deste recolhimento…
…que deu lugar ao mercado do Anjo em 9 de Julho de 1839.
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