9.14 - Memórias de Camilo Castelo Branco - I, O burguês do Porto, O portuense no teatro, teatro S. João - pateadas e distúrbios, Janotas tripeiros, Praça da Batalha em noite de representação.
Sobre Camilo Castelo Branco já nos referimos várias vezes, muito especialmente sobre o seu julgamento e prisão na Cadeia da Relação do Porto nos nossos lançamentos de 18/11/2012, Bairros da Cidade XIX e 30/3/2015, outros edifícios Públicos III.
Porém, no âmbito deste capítulo cabe bem referências suas sobre a vida no Porto
Artur de Magalhães Basto, no seu livro Figuras literárias do Porto, refere várias situações recolhidas de Camilo:
Barbeiro do séc. XIX
“…mas o teatro mais interessante de observar era o de S. João, durante a temporada lírica; este antiquíssimo teatro, que exteriormente dava ideia de uma fábrica de moagens, no interior estava bem arranjado, possuindo um salão de entrada correctamente disposto e um outro no andar nobre. De forma elíptica, posto com elegância; a sala de espectáculos estava bem mobilada, o pano de boca para os lados; nos camarotes viam-se as principais famílias portuenses, ostentando as senhoras ricas “toilettes” e jóias de preço; na plateia velhos “dilettanti” e rapazes da primeira roda, aprumados nas negras casacas, fazem destacar os peitilhos de camisas, onde cintilam os brilhantes das abotoaduras”. Um forasteiro de 1908.
Artur de Magalhães Basto descreve uma noite de ópera, em O Porto do Romantismo: "A enchente é espantosa, e no verão o calor é tão intenso como se “estivesse na câmara de um vapor, em calmaria, por alturas de S. Tomé ou Senegal”, e as pulgas mais abundantes “do que em qualquer galegaria de atrás da Sé”.
O “bufete” vendia sorvetes de diferentes qualidades, a 4 vinténs cada um.
O espectáculo começa e vai decorrendo numa atmosfera pouco tranquilizadora. Rebentam as primeiras palmas, estruge uma formidável pateada. Há bravos e assobios. Corre o pano. Chamados os artistas, estes aparecem no proscénio. A balbúrdia cresce. A pateada torna-se infernal. Os actores investem contra o público, como em 1849, na representação dos Foscaris. São lançados dos camarotes impressos com poesias, respondem-lhes os díscolos arremessando para o palco toda a qualidade de projecteis, até botas velhas. Martelos, cabos de vassouras, tacão, goelas, tudo que faça barulho é posto em movimento. No ar esvoaçam pombas brancas e rodopiam bengalas e mocas e, por vezes, luzem punhais. Partem-se cadeiras inocentes e cabeças apopléticas. Os artistas são enxovalhados. Uma actriz a “italiana Luisa Abbadie, enlouqueceu de repente, na noite de 3/5/1852, depois de ter sido desfeiteada pelo público”.
A chinfrineira é indescritível, os destroços na mobília avultados e o sangue a escorrer das testas abundante… resultado: as autoridades ordenam o encerramento do teatro por alguns dias”.
Certo dia, depois de uma cena deste tipo, a polícia proibiu a entrada de bengalas ou qualquer outro objecto perigoso.
“Os beligerantes, ao terem conhecimento da “ordem superior”, não se intimidaram, antes pelo contrário, nessa noite era de ver como, todos humildes, iam fazer a entrega das suas badines no bengaleiro respectivo. O governador civil rejubilava por ver como as suas determinações eram rigorosamente cumpridas; mas o que ele não sabia era que a cada bengala depositada correspondia um cabo de vassoura, a que previamente de cortara a rama de piaçaba, insidiosamente enfiado pelo colete abaixo duma grande parte daqueles tão submissos quão resignados cumpridores da lei. Escusado será dizer que, nessa noite, no teatro S. João não caiu Tróia, isso não; mas o espectador incauto ou desprevenido veio de lá escorraçado a rabo de vassoura, como qualquer intrometido fraldiqueiro”. O Tripeiro, Volume 2, 1/7/1909.
“Não era sem certos cuidados que algumas famílias se dispunham a ir ao teatro. A mãe dá ordem à criada que faça a ceia; o pai diz ao galego que ponha duas velas de cêbo no lampião de folha. Apenas o jantar (almoço) terminou e o último palito fez a limpeza dentária, vai a família dormir a sesta, porque tem de perder a noite. À hora própria lá segue a família para o teatro, porque é bom ir cedo e sem fadiga. O chefe de família leva duas pistolas no bolso para o que der e vier; atrás, a criada com o merendeiro, os frangos assados, a vitela, as azeitonas, a pingoleta etc. Chegam as damas ao camarote, estendem as mantilhas de lapim para fora da borda e colocam-nas cuidadosamente nuns arcaicos lanceiros de pau que havia nos camarotes; ao fundo a criada senta-se junto ao cesto da ceia. Os espectadores começam a encher o teatro e o Aniceto vem distribuir pelas estantes da orquestra os diversos papeis da partitura; trabalho que faz pacificamente, excepto se algum frequentador das varandas lhe grita de lá; - Oh Clemente, quebraste a infusa! – porque então o homem perde a cabeça, troca os papeis e dá por paus e pedras.
Os janotas cumprem a sua elegante missão de conquistadores; as damas choram ou sorriem, como as situações da peça o exigem; à hora própria, aproveitam-se os intervalos para a ceia e tudo corre no melhor dos mundos, se os artistas não desafinam e se as tormentas teatrais não provocam as pateadas.
Que velhos costumes e clássicos hábitos da velha sociedade que dormia a sesta e ia cear ao teatro!” In O Tripeiro, Volume V.
No final das representações os artistas costumavam reunir-se nos cafés do Leandro e no Águia d’Ouro, onde comentavam o decorrer da récita e discutiam as falhas do próximo.
“O meio de transporte habitual das famílias, para o Teatro de S. João, para os bailes, para as romarias, era o famoso carroção, veículo de 4 rodas da forma de um prédio, com duas fachadas laterais de cinco janelas cada uma, e porta ao fundo, a que o passageiro subia por quatro degraus de escada guarnecida por um corrimão. Uma junta de alentados bois de Barroso puxava pelo "monumento”.
“Havia famílias enormes que não cabiam em duas salas e que se acomodavam num carroção. No Inverno, uma dessas ingentes moles chegava à porta do Teatro S. João. A portinhola abria-se, havia uma escada com corrimão para descer; o carroção começava a despejar senhoras. O pátio do Teatro enchia-se e o carroção continuava sempre a deitar gente. Pasmava-se que ele pudesse conter tantas pessoas, ia-se olhar e encontrava-se ainda, lá dentro, no escuro, a mexer-se e a preparar-se para sair, tanta gente como a que estava fora”. Ramalho Ortigão
“Nas noites de espectáculo a concorrência na Batalha e ruas próximas era sensível e até nos tempos antigos era assinalada pela venda de doces e rebuçados como nos arraiais. A formatura dos trens, o alinhamento das seges, a série de carroções com os bois deitados no chão, a fileira das cadeirinhas, guardadas apenas por algum dos galegos vigilantes, e o agrupamento dos lampiões, defendidos pelos criados menos dormentes, isto em volta do teatro, pareciam um acampamento!” In O Tripeiro, Volume V, 1926.
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