quarta-feira, 4 de setembro de 2013

DIVERTIMENTOS DOS PORTUENSES - III

3.5.5 – Ditos e frases feitas


Escreve Ramalho Ortigão: “A língua é tão diferente que não nos entenderíamos se falássemos hoje aos nossos filhos a linguagem que ouvíamos então aos nossos pais. A um copo de vinho do Porto chamava-se “uma pinga de choco”, a um concerto “uma musicata”; era “Zé Pereira” um bombo; de um baile dizia-se “uma súcia”; e um passeio pelo rio acima uma “franciscanada”.


Há um dito muito comum no Porto, e possivelmente em mais zonas do país, que demonstra desprezo ou menor consideração por alguém. É ele “para quem é bacalhau basta”. Na verdade antigamente o bacalhau era um prato consumido pelas famílias mais pobres, pois era um alimento barato, e que a alta burguesia não apreciava. Sendo seco, conservava-se muito tempo.


Vem isto a propósito de uma interessante figura da Madalena (V. N. Gaia), da segunda metade do séc. XIX, que frequentava habitualmente os cafés e lugares públicos do Porto. 
Era o António Gomes Moraes da Magdalena, homem com uma extraordinária memória e que gostava de se divertir com os amigos usando esta seu dom. Chamavam-lhe o Memorião. Sabia de cor toda a obra da Camões, inclusive os Lusíadas, e enormes textos de outros autores.


Certa noite, no Teatro de S. João, houve um importante sarau de gala em que, durante um intervalo, o poeta Guilherme Braga (1845/1874) declamou, do seu camarote, um poema que foi muito aplaudido. Dado o entusiasmo do público, teve de o recitar segunda vez e de novo com grande sucesso. 
No intervalo seguinte, pelos corredores, as conversas giravam à volta de tão grande talento e os cumprimentos e palmadinhas nas costas do autor eram efusivos. O nosso Moraes, chegando-se perto de Guilherme Braga, afirmou em alta voz que já conhecia aquela peça literária. Todos os presentes, sobretudo o poeta, ficaram paralisados e estupefactos. Seria que Guilherme Braga, tão conhecido como bom poeta, teria copiado aquele poema? Como confirmação do que afirmava o Moraes recitou-a total e correctamente. Foi um momento de perplexidade e todos se viraram para Guilherme Braga esperando a sua reacção. Este, confuso, excitado e, possivelmente vermelho de fúria e vergonha, afirmou que tinha composto aquele poema para essa noite especial e o não tinha dado a conhecer. Para salvar a reputação do poeta, então o Moraes declarou que lhe tinha bastado ouvir duas vezes o poema para o decorar e afirmou que não havia dúvida que o autor era Guilherme Braga. 
Mas, pensarão os leitores, que tem isto a ver com o dito “para quem é bacalhau basta”. 
Calma! Ainda temos outras histórias a contar antes da explicação. 

Frente ao monumento ao Infante D. Henrique existiu a Sociedade Camilo Castelo Branco, frequentado pelo Porto culto. Uma tarde, em solene sessão, numa data ligada àquele escritor, o Conselheiro José Augusto Correia de Barros (Porto 1835 – 1908) proferiu um discurso, possivelmente muito solene e longo, como era costume na altura. Aliás, este conselheiro era conhecido como escritor, jornalista, político etc. Homem de categoria! Foram recitados versos e textos do homenageado. Depois da sessão a direcção da sociedade ofereceu um copo d’água aos oradores, jornalistas e outros, tendo o Moraes sido convidado. Eis senão quando o Moraes, perante a perplexidade de todos os presentes, reproduziu o discurso do conselheiro de princípio a fim! E como brincadeira ainda recitou uma estrofe dos Lusíadas ao contrário, do 10º verso para o 1º. E, para mais espanto, repetiu o discurso de outro orador da tarde, Alves Mendes. 


Alguns amigos do Moraes forçaram-no a que oferecesse um almoço na sua terra, pois pretendiam ver o ambiente em que ele vivia. Mas, com a maior franqueza, informou-os que a Madalena era uma freguesia muito pobre e que receava não lhes poder oferecer um repasto ao seu gosto. Porém, eles insistiram e foi marcado dia para esse encontro gastronómico. Chegados à Madalena seguiram para uma tasca onde lhes foi servido um caldo fresco seguido de uma travessa de bacalhau cozido com batatas e cebolas de que pouco comeram. Tomaram por galhofa a prevenção, mas quando viram que a travessa saía da mesa para dar lugar a umas maçãs, sempre perguntaram ao Moraes se aquilo era a sério. 
–Pois não vos disse que a terra não tem recursos? Tendes de sujeitar-vos ao que há em casa. Nesse caso, amigo Moraes mande vir outra vez o bacalhau que nós sem comer é que não ficamos. 
É nossa convicção que o Moraes, tendo sido obrigado a oferecer o almoço, terá, propositadamente, seguido o aforismo popular. 


Já no séc. XVII se vendia no Porto o bacalhau, que em 1671 tinha o preço máximo de 25 reis o arrátel (459 gramas). Este peixe era vendido na Ribeira, junto da antiga fonte e só por negociantes devidamente autorizados pela câmara. Os barqueiros e particulares estavam proibidos de transportar para Gaia este portuense pitéu, salvo com licença da mesma.


Outro dito popular era “Vá receber ao falcão”! “Dizem-me que Falcão foi um antigo funcionário da Alfândega do Porto e era um endiabrado boémio. Foi hóspede de várias pensões e nunca pagava as mensalidades; quando se aproximava o fim do mês, mudava de pensão e assim comia e dormia sem gastar dez reis. Mas isto acontecia também com o sapateiro, com o alfaiate, etc., pois quando o procuravam na casa onde lhe tinham levado as botas ou o fato ele já tinha desaparecido. Presume-se que venha daí a frase – vá receber ao Falcão, visto ele nunca pagar”.


“Ir para o maneta” – Quando, em 1808, se deu a primeira Invasão Francesa, Junot veio acompanhado pelo General Louis Henri Loison famoso pela sua crueldade, torturando e matando numerosas pessoas. O general perdera um braço, num acidente de caça, tendo, por essa razão, ganho a alcunha de “O Maneta”. Passados que são 200 anos ainda se usa este dito popular associado à expressão "mandar ou ir para o maneta", com o significado original de ir para a tortura ou para a morte. Actualmente, a expressão pode significar "dar cabo de alguém ou de alguma coisa", "destruir", "escangalhar-se", "estragar-se", "perder-se e não ter recuperação".

Cuidado com a língua! 


Outra frase muito ouvida é “sou um portuense de gema”. Segundo Helder Pacheco os tripeiros da gema são os de Sé, S. Nicolau e Vitória (1583): da clara são os de Cedofeita, S.to Ildefonso e Miragaia (séc. XVII/ XVIII ), Foz, Lordelo e Campanhã (1836), Paranhos (1837) e Bonfim (1841 ) . Da casca são as da coroa disto tudo ,as mais recentes ,mas dentro dos limites da cidade : Nevogilde , Ramalde e Aldoar(1895).


“A cavalo dado não se olha a dente” – Como é sabido, quando alguém pretendia comprar uma cavalgadura, verificava o estado dos seus dentes pois, era por eles que aquilatava a sua idade e saúde. Ora se era dado…


“Do tempo do arroz de 15” – Tempos houve em que o arroz, que se importava da Índia, da China e de outros países, não pagava direitos alfandegários e era vendido a 15 reis o arrátel (0,459 kg.). 


“Sair pela porta do cavalo" – Esta expressão, quando usada no Porto, significava que alguém se eximia a sair sem ser vista, usando a porta das trazeiras. Isto, porque tinha na consciência pesada e não queria, por cobardia, ser confrontado com os outros. A “porta do cavalo” era a que existia nas trazeiras do Hospital de Santo António e que servia como porta de passagens das carruagens e dos cadáveres. Tinha um batente com a cabeça de um cavalo.


“Mandar às malvas” – expressão com muitas centenas de anos. No local em que está a Igreja dos Clérigos existiu “o campo das malvas” por aí haver muitas dessas plantas. Era o cemitério dos enforcados portanto, lugar maldito. Mais acima, onde está a Torre dos Clérigos existiu a Capela do Senhor dos Aflitos onde se realizavam os responsos daqueles infelizes. No séc. XVIII, quando da construção daqueles templos, esta capela foi mudada para o jardim do Hospital de Santo António. O cemitério dos enforcados passou a ser nas trazeiras deste hospital na Rua dos Quartéis, hoje D. Manuel II. Assim, “mandar às malvas” era uma expressão repulsa.


No último quartel do séc. XIX, com grande publicidade, apareceu no Teatro Circo (depois Príncipe Real e hoje Sá da Bandeira) uma mistificação denominada “Metempsicose” que atraiu muita gente, na esperança de assistir a coisas fantasmagóricas.
Num salão completamente às escuras aparecia, sobre o fundo preto, um busto de mulher com aparência de gesso. Usando espelhos e luzes “começava a incidir um ténue colorido que muito lentamente se ia modificando até que o busto tomava a cor natural de gente viva até que se tornava no perfeito busto de uma linda rapariga, que até ali era de gesso. Mexia os lábios e os olhos com tais sorrisos que naquela escuridão nos tornava a todos mexedores…”. In O Tripeiro, Volume 3, Dezembro de 1910.

Deste espectáculo nasceu a frase, durante muitos anos repetida, “está lá ou é de gesso?
Pretendia-se com esta expressão perguntar: estás disposto a aturar-me?; é verdade ou é mentira? etc...


O mercador portuense Afonso Martins (Alho), procurador do concelho, foi enviado por D. Afonso IV à Inglaterra com a finalidade de tratar com Eduardo III um acordo económico, que permitisse, entre outras coisas, a pesca de barcos portugueses naquela costa. Regressado, teve a anuência do Rei para em 20 de Outubro de 1353 assinar, em Windsor, o primeiro tratado entre Portugal e Inglaterra. Terá sido mesmo o primeiro tratado do mundo entre dois países. Dado a sua habilidade e diplomacia foi considerado um excelente embaixador dos nossos interesses. Os portuenses criaram então o aforismo “esperto como o alho”. Ainda hoje, mais de seiscentos anos depois, esta frase é repetida mas, infelizmente, duma forma deturpada, “esperto como um alho”, o que lhe tira qualquer sentido.




Existe no Porto a Rua Afonso Martins Alho, entre a Rua das Flores e a de Mouzinho da Silveira, e onde se encontra a conhecida Adega do Olho.

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