6.26.2 - Transportes de passageiros III - O Carroção I
Carroção no Museu do Carro Eléctrico – foto Portojo
O carroção foi um dos mais extravagantes meios de transporte que o Porto conheceu na sua história. Muitos autores se referiram e divertiram com esta insólita e martirizante forma de viajar.
Há gravuras e desenhos que mostram o carroção, que levava os “desgraçados” encurralados e, como Camilo dizia “crucificados nas suas próprias cruzes”. O carroção já existia no séc. XVII e foi inventada por uma família muito obesa e numerosa para a qual não havia carroça que a pudesse aguentar. Porém, foi após as invasões francesas que, por falta de cavalos, aumentou muito o seu uso. O carroção era muito utilizado por veraneantes do Porto que iam passar umas horas nas praias perto da Senhora da Luz.
Vale a pena ler Ramalho Ortigão no seu livro As praias de Portugal, de 1876:
E Ramalho continua, sobre o carroção do tio:
E termina:
In O Tripeiro – Volume V
Também o Historiador do Porto Dr. Artur de Magalhães Basto escreveu “ O Papá, a mamã, as meninas, a criada, os marçanos da loja, sempre às cortesias, aos cotovelões e às cabeçadas uns aos outros, por causa dos solavancos da caranguejola, chegavam ao lugar do destino com a roupa num figo, o estômago na boca e um apetite devorador. No regresso as cestas vinham vazias e os passageiros, uns por cima dos outros, chegavam a casa a dormir.”
O poeta humorista Faustino Xavier de Novais escreveu a sua piada sobre o lento e incómodo carroção da seguinte forma:
“O progresso que os tipos apregoam
É quase um nome vão, no Porto nosso,
Nem pode aqui, jamais meter o dente,
Enquanto carroções de antigas eras,
Divagam, a dormir, por essas ruas!
O marido infeliz que a esposa veja
Em capoeiras tais tomar assento
Dirigindo-se à Foz, a tomar banho,
Logo de negra cor vestir se deve,
E desse instante, já, crer-se viúvo;
Porque as vidas, bem vês, são curtas hoje
E não deve supor caso possível
Viver até que um dia a esposa volte!
Carroção de família abastada - aguarela de Roque Gameiro.
Camilo também escrevia, em 1867, sobre este “delicioso” transporte:
“ Eis aqui um livro necessário.
É incrível que não esteja escrito, há muito!
Fazem-se bibliotecas do caminho-de-ferro! Destinar livros para serem lidos onde ninguém lê, nem pode ler, nem deve ler! Que paradoxo!
Já as ciências médicas protestaram contra as leituras na via-férrea, como funestas aos olhos, e origem de graves oftalmias. De mais disso, quem furtará a vista do belo e rápido relance duma paisagem para a fatigar numa página de romance?
Livros, bibliotecas, livrarias inteiras, livros enormes precisam-se, querem-se mas é para o carroção, onde o tempo é infinito, a vida longa como os anos dos encarcerados, e o movimento imperceptível como o da rotação do globo.
Há trezentos anos, quando o carroção portuense estava na flor da juventude, a honrada gente desta sólida terra, ao deslocar-se da freguesia da Sé para os longínquos campos de Cedofeita ou praias de Miragaia, levava consigo um Flos-sanctorum, ou outro livro de igual tamanho para aligeirar as horas, os dias, e as semanas da pavorosa caminhada. Os carroções por aqueles tempos, eram gabinetes de leitura. Dali e das livrarias conventuais saíam os sábios, os famigerados Barros, Sás, Toscanos, Rangeis e Mendonças. Estes, e muitos mais, nobilitaram o carroção, ilustrando-o com palestras literárias tais e tão compridas que muitos entraram analfabetos no carroção, ao abalarem-se para os arrabaldes, e voltaram saturados de ciência, como os doutras idades das covas de Salamanca.
Espantava-se o leitor, se eu lhe desse a lista de todos os varões agudíssimos em letras que saíram daqueles antros de couro! Quer-me parecer que naqueles dourados tempos até os bois deviam saber o seu pedaço de latim!
E agora? O que é o carroção agora? É a cova de Trophonius. Toda a gente que lá entra, cai em letargo, e sai triste, areada dos miolos e com as cruzes tão doridas que bem pode dizer-se que é aquilo um crucificar-se a gente nas próprias cruzes!
A causa disto é óbvia. O corpo sofre em duplo, porque o espírito vai mazorro, achumbado e sem migalha de distracção que o deslumbre do seu suplício.
É uma virtude das que Monthion não podia prever nem premiar esta de escrever um livro para os frequentadores do carroção. Hei-lo aí vai. Vou, deste mundo, contente: sei que deixo um padrão imorredouro da minha filantropia.
Se o livro carregar de mais essências narcóticas o sono do leitor, tanto maior serviço lhe fiz. O carroção é um dilema: DORMIR OU MORRER."
Também os havia pequenos, em forma de coche, para 4 pessoas, e esses tinham, como o da gravura, as portinholas de lado. Eram, por via de regra, assim os particulares, isto é, os que havia nas casas de mais tratamento da cidade, ou nas terras principais da província.
“Traquitanas para ir a banhos à Foz...
Vasculhando um velho jornal do já longínquo ano de 1854, apareceu esta curiosa notícia, a qual transcrevo aqui pela "caricatura". A polícia deveria intervir para que na época dos banhos, na estrada da Foz, os trens mais rococós não transitassem assim livremente, dando aos estrangeiros uma fraca ideia do progresso em Portugal. Têm-se mesmo ultimamente construído veículos indecentes e extravagantes; - há dias vimos um destes carros, que não era mais que o fundo de um carroção e cuja forma lembrava o barco Salva-vidas; há outro que parece uma tina, e o viandante ali metido parece que vai aproveitando o tempo tomando o seu banho.
Ainda se vêm por ai boleeiros de chapéu desabado e mal trajados, A polícia pode muito bem obrigar os donos das carruagens de praça a fazer uma reforma completa do material e no pessoal em harmonia com a decência e bom gosto que devem caracterizar uma cidade civilizada. - in O Commércio de 9 de Agosto de 1854
Ainda a propósito deste ”rápido e cómodo” transporte não podemos deixar de transcrever a passagem de um texto de Alberto Moreira em O Tripeiro, série V, Ano XI, sobre a viagem de Rodrigues de Freitas a Braga: “à meia-noite do dia 14 de Agosto de 1856, tomaram na Praça da Batalha o carroção que ligava o Porto à cidade dos arcebispos. A partida do moroso veículo, que conduzia 20 passageiros, foi assinalada do forte badalar de uma sineta e, iniciada a marcha, às duas horas da madrugada estavam em Leça (do Balio) e às cinco chegavam à Carriça (Muro, Trofa), já maçados por uma viagem de cinco horas, num carroção puxado por bois!... Duas horas depois, já a diligência continuava viagem, e Rodrigues de Freitas ia satisfeito, pois o almoço fora admirável e servido por uma mocetona linda e gentil… Nos seu lento rodar, e em constantes solavancos a diligência chegara a Famalicão pelo fim da tarde. Todos os passageiros se foram hospedar na estalagem “Real”, única existente na pitoresca paragem, descansaram algumas horas e, no começo da madrugada, retomaram a viagem… Naquele caminhar monótono chegaram a Braga ao toque das Avé Marias… Nesse tempo algumas pessoas que precisavam de se deslocar a Braga… quando não tinham possibilidades de arranjar um alazão, preferiam ao carroção a jornadear a pé – economizavam dinheiro e poupavam tempo.”
Braga antiga - vídeo
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